segunda-feira, 18 de maio de 2020

ALEA JACTA EST — E QUE DEUS NOS AJUDE A TODOS

Enquanto o mundo se curva ao poderio do inimigo invisível que já infectou 4,8 milhões de pessoas e, destas, matou 314 mil, o Brasil, que superou a Itália e a Espanha no último sábado e se tornou o quarto país do mundo em número de casos confirmados da Covid-19, precisa se desdobrar em três frentes de batalha.

Além de debelar a crise sanitária e seus efeitos nefastos na economia, o país precisa combater outro adversário. Este, porém, nada tem de invisível. Tem nome, sobrenome e endereço conhecidos (embora também se apresente como "Airton Guedes", "Rafael Augusto Alves da Costa Ferraz" e "paciente 05"). Trata-se de alguém em quem fomos obrigados a votar a contragosto, para evitar um mal maior. Mas jamais imaginamos que estaríamos criando o monstro que aí está.

Sabíamos tratar-se de um anormal e mau militar (na definição irreprochável do ex-presidente general Ernesto Geisel), que foi defenestrado do Exército por planejar explodir bombas de baixa potência em quartéis e academias, que se elegeu deputado federal sete vezes seguidas e, ao longo de longos 27 anos e fumaça como parlamentar do baixo clero, aprovou dois projetos e colecionou mais de trinta ações criminais (a maioria movida por políticos de esquerda, mas até aí morreu o Neves).

Resta saber o que fazer para combater um comandante que bombardeia o próprio navio, quando deveria conduzi-lo a bom porto. Felizmente, a sabedoria popular ensina que a necessidade é a mãe da invenção, e a história, que quando não há caminhos é preciso criá-los.

É certo que o momento não poderia ser pior para um impeachment, como adverte o presidente da Câmara dos Deputados. Mas o mesmo se poderia dizer em relação à demissão não de um, mas de dois ministros da saúde, em menos de 30 dias, por um presidente que não se sabe se é maquiavélico ou demente. E isso em meio à mais grave crise sanitária dos últimos 100 anos — situação em que alguém experiente e muito bem assessorado no comando do Ministério da Saúde faria toda a diferença.

Nelson Teich não foi um bom ministro, mas não é justo culpá-lo pelo desperdício de quase um mês de energias dispersas. Desde a implosão de Mandetta, quem assumiu o posto foi o próprio presidente — Teich passou por Brasília como mera camuflagem para a aversão que seu agora ex-chefe nutre pelo iluminismo.

Bolsonaro — que ganhou no quartel o apelido de "Cavalão" — não quer um ministro da Saúde, mas um fantoche, um áulico que ecoe as suas ideias para o setor. Ninguém com um pingo de dignidade, ou que tenha uma reputação a zelar, ou pura e simples vergonha na cara aceitará o papel de submissão aos “achismos” e obsessões presidenciais, exigência determinante do capitão para a sobrevivência de seus auxiliares. Sendo assim, talvez a única solução seja recorrer à disciplina militar.

Se Cavalão, digo, se Bolsonaro abdicasse do posto de ministro da Saúde para assumir a Presidência — cargo para o qual foi eleito por 57,7 milhões de brasileiros —, algo de bom poderia acontecer, sobretudo se fizesse uma autocrítica e abrisse um canal de diálogo sincero com governadores e prefeitos. Como o único tipo de autocritica que o presidente conhece é a autocritica a favor, o que vem por aí é a continuidade de uma corrida insana, com o capitão trevoso disputando com o vírus o comando da crise.

Pouco importa se Cavalão (ops), se Bolsonaro se criou no confronto ou foi criado por ele. Fato é que criatura e criador tornaram-se indissociáveis, o que desqualifica ambos os dois para o exercício da Presidência. A Constituição oferece duas soluções: o impeachment, em caso de crime de responsabilidade, e a abertura de inquérito pelo procurador-geral da República, em caso de crime comum. Existe uma terceira via — menos traumatizante — que seria a renúncia, mas nesse caso a iniciativa caberia ao próprio presidente, o que a torna tão improvável quanto uma chuva de Moët & Chandon.

Houve ao menos quatro renúncias (de presidentes) na história republicana do Brasil: Deodoro da Fonseca, em 1891; Getúlio Dornelles Vargas, em 1945; Jânio da Silva Quadros, em 1960; Fernando Affonso Collor de Mello, em 1992. Cada qual teve suas peculiaridades e motivações, naturalmente, mas este não é o momento para esmiuçar esse assunto.

Impeachments, houve dois na era pós-ditadura: Collor, em 1992, e Dilma, em 2016 (tecnicamente, houve outros casos desde a proclamação da República, mas alguns não resultaram em deposição e outros que... enfim, não é o momento para maiores delongas).

Collor renunciou horas antes de ser julgado no Senado, mas os parlamentares resolveram prosseguir com o julgamento e, por 76 votos a 3, o caçador de marajás de araque foi inabilitado para o exercício de função pública pelos oito anos seguintes. Dilma é história recente e, portanto, dispensa outras considerações. Mas não me furto a mencionar que a gerentona de araque foi campeã absoluta em pedidos de impeachment: foram nada menos que 68, enquanto Collor foi alvo de 29Itamar, de 4; FHC, de 27; Lula, de 37, e Temer, de 33.

Pedidos de impeachment de presidentes da República são protocolados na Câmara dos Deputados, e cabe ao presidente da Casa decidir se dá, ou não, andamento aos processos. Bolsonaro já contabiliza mais de 30, mas Rodrigo Maia ainda não se dignou de dar andamento a nenhum deles (e tampouco os arquivou, é bom que se diga).

Na última sexta-feira, o ministro Celso de Mello determinou que Bolsonaro fosse notificado do processo em tramitação na Corte que envolve um pedido de impeachment contra ele (o processo foi apresentado com o objetivo de cobrar, pela Justiça, que o presidente da Câmara examine um pedido de afastamento protocolado em março).

Os autores alegam "omissão do Legislativo" em avaliar a abertura de impeachment do presidente. O decano pediu “prévias informações” a Rodrigo Maia, que classificou o afastamento como “solução extrema” e pontuou que não há norma legal que fixe prazo para a avaliação dos pedidos protocolados no Congresso. A decisão por arquivar, ou não, a ação cabe ao relator, ministro Celso de Mello.

Em meio a esse salseiro todo, o general Augusto Heleno desceu à trincheira das redes sociais e, armado de tambores e clarins, o peito estufado como uma segunda barriga, proclamou que o decano do STF cometerá "um ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional" se mandar divulgar a íntegra da gravação da reunião ministerial de 22 de abril (vale lembrar que o Celso de Mello deve assistir ao vídeo hoje à tarde e decidir se libera o conteúdo parcial ou integralmente).

Heleno insinua que, na reunião, o presidente e seus ministros trataram de "assuntos confidenciais e até secretos." Em petição ao decano, a defesa de Moro pede transparência total, alegando que a gravação não expõe "segredos de Estado", apenas "constrangimentos". De fato, a julgar pelos vazamentos, a reunião transcorreu em clima de botequim, sob atmosfera constrangedora, marcada por xingamentos, desqualificações e alucinações.

Ao empurrar Moro para fora do governo, o Cavalão, digo, o capitão ganhou um adversário metódico. Com a experiência adquirida em 22 anos de magistratura, o ex-ministro tenta transformar sua cruzada contra numa espécie de combo, misturando dois inquéritos: o que apura a interferência política de Bolsonaro na PF e o que investiga um aparato de fake news com as digitais do bolsonarismo. Moro e seu advogado, Rodrigo Sanchez Rios, insistem em vincular os comentários feitos pelo presidente, na reunião de 22 de abril, à mensagem que ele enviou para o então ministro da Justiça no dia seguinte, via WhatsApp.

Na reunião, Bolsonaro falou em trocar "gente da segurança nossa no Rio de Janeiro" (pode me chamar de superintendente da PF) antes que surgisse uma "sacanagem" com potencial para "foder minha família toda ou amigo meu". Deixou claro que, para atingir seu objetivo, demitiria até o ministro se necessário. No WhatsApp, reproduziu para Moro notícia segundo a qual o inquérito sobre fake news está "na cola" de uma dezena de parlamentares bolsonaristas. E arrematou, referindo-se a Maurício Valeixo, então diretor-geral da PF: "Mais um motivo para a troca". Os dois inquéritos correm no STF; um é relatado pelo ministro Celso de Mello, e o que roça em Carluxo, pelo ministro Alexandre de Moraes. Num, observa-se o desejo de Bolsonaro, noutro a causa. Juntá-los é como unir pólvora e o fósforo.

Num esforço extra para defender o chefe da acusação de interferir politicamente na PF, Augusto Heleno divulgou uma nota. Quem lê o texto fica com a impressão de que, defendido pelo amigo, o presidente tornou-se um personagem ainda mais indefeso. A pretexto de socorrer Bolsonaro, um amigo em apuros, o general namora o ridículo. E vem sendo totalmente correspondido. Beleza. Cada um faz com sua biografia o que bem entender. O que não é aceitável é que peça aos brasileiros para fazerem como ele, fingindo-se de bobos pelo bem do presidente.

"Não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu. Vou interferir. Ponto final", proclamou o general da banda na fatídica reunião. Sua declaração consta de transcrição oficial levada ao STF pela AGU, que extraiu da gravação feita durante a reunião os trechos que considera relevantes para o inquérito. A transcrição é parcial, mas o pouco que ela expõe já é suficiente para desnudar a versão oficial difundida pelo próprio Bolsonaro. "Eu não falo Polícia Federal", disse o capitão. Mentira. A menção ao órgão escorre dos lábios do presidente no instante em que ele se queixa do desempenho dos serviços de espionagem do governo. "Pô, eu tenho a PF, que não me dá informações", ralhou a certa altura.

Bolsonaro também afirmou a repórteres que o conteúdo da fita estilhaçaria a acusação de Moro, que mencionara somente preocupações com sua segurança pessoal e a proteção de seus filhos e amigos, e que não dirigira a queixa a Moro, mas o chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Lorota. O contexto e os fatos que se sucederam ao encontro não deixam dúvidas de que os alvos eram a PF e Moro. "Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira", disse o presidente.

Com efeito, nesse trecho o capitão não cita a PF nem Moro, mas tampouco faz referência ao GSI nem ao general Heleno. Confrontada com os fatos, a versão não para em pé. De resto, o que se verificou nos dias subsequentes à reunião foi uma incursão de Bolsonaro na estrutura da PF, não no GSI. E que ele exonerou o diretor-geral da PF, Mauricio Valeixo, com requintes de falsidade, seja por anotar no ato de exoneração que o delegado deixou o cargo "a pedido", seja por incluir no documento a assinatura digital de Moro.

Nas pegadas do expurgo de Valeixo sobrevieram o desembarque de Moro, a tentativa de nomeação de Ramagem (barrada pelo STF), a troca de Ramagem pelo subordinado dele na Abin e a mexida no comando da superintendente da PF no Rio. Tudo exatamente como ameaçara Bolsonaro na reunião: "Vai trocar [o superintendente do Rio]; se não puder trocar, troca o chefe dele [Valeixo]; não pode trocar o chefe, troca o ministro [Moro]. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira."

No GSI, nada indica que o general Heleno tenha sido decapitado. Não há registro de substituições no grupo que cuida da segurança de Bolsonaro e de sua família. Afora a percepção de que Bolsonaro tentou mesmo colocar a PF a serviço do seu clã, a transcrição trazida à luz pela AGU revela que o presidente tem uma noção esquisita sobre a tarefa dos órgãos de inteligência do governo. Do modo como se expressou, ele parece associar esse setor mais à bisbilhotagem do que à coleta de dados estratégicos, úteis à tomada de decisões de um presidente. 

O linguajar rastaquera, os modos rústicos e a ignição instantânea fazem parte do DNA do capitão caverna, mas os temas tratados na reunião parecem ter aguçado os seus maus bofes. Em certos trechos, ele se dirigiu aos subordinados como se estivesse fora de si, e sempre que isso ocorre ele não consegue esconder o que tem por dentro.

Resta a Bolsonaro confiar na aposta que fez ao indicar Augusto Aras para o posto de procurador-geral. Se ele decidir que a investigação deve ser arquivada, o assunto estará encerrado, não importa a quantidade de evidências em contrário. É nisso que aposta o Cavalão, mas, por vias das dúvidas, articula com o rebotalho do Centrão para evitar que eventuais desdobramentos políticos lhe ameacem o mandato.

Aras já pediu ao ministro Celso de Mello que mantenha os detalhes sórdidos da gravação da reunião em sigilo, revelando-se menos concessivo do que a AGU e mostrando-se mais realista que o rei. Defensor de Bolsonaro no imbróglio, o AGU defendeu que sejam expostas à luz solar todas as manifestações do presidente na reunião, menos "a breve referência a eventuais e supostos comportamentos de nações amigas", além das falas dos ministros e presidentes de bancos públicos presentes à reunião. 

Aos devotos que carregam seu andor nas redes sociais, Bolsonaro disse o seguinte: "São dois trechos de 30 segundos que interessam ao processo. Mas, da minha parte, autorizo a divulgar todos os 20 minutos, até para ver dentro de um contexto. O restante a gente vai brigar. A gente espera que haja sensibilidade do relator [Celso de Mello]. É uma reunião reservada nossa.”

No serviço público, a publicidade é a regra e o sigilo, a exceção. Pela lei, o Planalto poderia ter requisitado a classificação da fita da reunião como sigilosa, secreta ou ultrassecreta. Mas não ocorreu a ninguém que seria necessário proteger segredos de polichinelo despejados num encontro com mais de duas dezenas de pessoas, incluindo dirigentes de bancos públicos.

Aras justifica a defesa do breu com o argumento de que a divulgação da íntegra transformaria o inquérito em "palanque eleitoral precoce das eleições de 2022." Se procurar um pouco, o procurador notará que o palanque já está montado. De um lado, o capitão das trevas, candidato à reeleição. Do outro, Moro, potencial adversário do trevoso. O procurador esmiuçou suas preocupações: "A divulgação integral do conteúdo o converteria, de instrumento técnico e legal de busca da reconstrução histórica de fatos, em arsenal de uso político, pré-eleitoral (2022), de instabilidade pública e de proliferação de querelas e de pretexto para investigações genéricas sobre pessoas, falas, opiniões e modos de expressão totalmente diversas do objeto das investigações."

Deve-se torcer para que o esforço exibido pelo PGR na busca de argumentos para poupar o governo da exposição de um vexame seja duradouro. O empenho pode ser útil na hora de procurar no inquérito elementos para o oferecimento de uma denúncia criminal que Bolsonaro dá de barato que o procurador-geral não formalizará. 

Aras está sendo pressionado pelas duas partes. Por um lado, a pressão interna, vinda dos procuradores, é pela denúncia, sobretudo depois de terem visto a gravação e interrogado as testemunhas. Há informações de que, ao receber os primeiros detalhes sobre o vídeo, o PGR soltou um palavrão de espanto diante dos relatos. De outro lado, a pressão vem do Cavalão, digo, do presidente, que acena ao procurador com a vaga do decano no STF, mas insinua que a indicação dependeria da atuação de Aras.

À medida que as provas se acumulam, arquivamento desse processo fica mais difícil. O advogado constitucionalista Gustavo Binemboim, muito antes de o vídeo da reunião ministerial se tornar o busílis da questão, escreveu um artigo em que explica os padrões decisórios consolidados para situações de incerteza no direito processual penal: in dúbio pro societate (em dúvida, a favor da sociedade), pelo recebimento da denúncia, no início do processo; in dúbio pro réu (em dúvida, a favor do réu) quando do julgamento final. “Na instauração da ação penal, prefere-se correr o risco de processar suposto inocente a inocentar possível culpado. No veredicto final, havendo dúvida razoável, prefere-se inocentar eventual culpado a condenar virtual inocente”.

Toda investigação é um quebra-cabeça que vai sendo montado peça por peça. Se alguma for esquecida, não se forma a figura final. Aras precisa levar em conta as atitudes pregressas do Cavalão, digo, do presidente, que desde agosto fala publicamente que quer mudar o comando da PF no Rio. Cabe ainda ao PGR analisar cuidadosamente o ambiente da reunião ministerial. Bolsonaro disse que em nenhum momento se referiu à Polícia Federal; os ministros Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos disseram que ele falou, sim, mas em outro momento da reunião, em outro contexto. Depois, tiveram uma crise de amnésia — que acometeu também o general Heleno. É preciso ver o vídeo inteiro para juntar as peças do quebra-cabeça. Um bom passatempo para o decano na quarentena.

Ao fim e ao cabo, de concreto, por ora, há apenas a evidência de que o rei se desnudou. O preço do apoio do centrão dependerá do tamanho da nudez.

Com Merval Pereira e Josias de Souza.