“De 15 em 15
anos, o Brasil esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos”, disse Ivan Pinheiro Themudo Lessa (1935–2012)
em algum momento dos 77 anos que viveu, parte em São Paulo, parte no Rio e, a
partir de 1978, em Londres, onde perdeu a condição de protagonista do
jornalismo e do pensamento nacionais que tinha em seus tempos de “O
Pasquim”.
Por ocasião da morte do jornalista, Ziraldo, hoje com 87 anos, lamentou:
“Millôr (Fernandes), Chico (Anysio), e agora Ivan... Estou me sentindo ameaçado. A
minha turma está se despedindo”. Em seu blog no G1, o Geneton Moraes Neto
escreveu: “O Brasil deu um novo passo em direção à mediocrização ampla,
geral e irrestrita: o coração de Ivan
Lessa parou de bater”.
Pessoalmente, acho que Lessa foi muito otimista em sua avaliação. Se ainda caminhasse entre
os vivos, ele possivelmente reduziria sua expectativa de memorização dos
tupiniquins para algo em torno de quinze dias. Se tanto. Afinal, “o
mundo gira e a Lusitana roda”, diz o bordão da centenária transportadora,
dando a entender que, enquanto a Terra dá voltas em torno do próprio eixo, seus
caminhões percorrem o planeta de cabo a rabo, entregando mudanças.
O que tem uma coisa com a outra? Não sei. Talvez essas colocações sem pé nem cabeça tenham como raiz quase 150 dias de isolamento com os números da Covid-19 divulgados 24/7 pelo rádio e pela TV, a ponto de banalizar o tema ou de levar o ouvinte/espectador a se atirar pela janela, conforme a susceptibilidade de cada um.
Falando em mudanças e emissoras de rádio, a Band News FM, criada em março de 2005 e a pioneira em transmitir notícias 24 horas por dia em frequência modulada, nasceu com a
proposta de oferecer aos ouvintes um jornal completo a cada 20 minutos, atualizado
com as principais notícias do Brasil e do mundo — daí o bordão “em 20 minutos tudo pode mudar”. Em 2016,
o site O Sensacionalista publicou
que o bordão estava defasado diante dos atribulados acontecimentos da política
nacional, e que seria mudado para “em 2
minutos tudo pode mudar”. Segundo o site, um diretor da rádio teria dito: “Temos observado que as mudanças
acontecem muito mais rápido do que na década passada. O brasileiro
já tem medo de ir ao banheiro e, quando voltar, estar na monarquia.
Se for necessário passamos para dois
segundos ou até mesmo milésimos”.
Profecia pura: três anos depois, mais
exatamente em novembro do ano passado, a Band
News FM para “em 1 segundo tudo pode
mudar”.
Relembrar o
passado é viver duas vezes — ou sofrer duas vezes, conforme a lembrança e o
ponto de vista de quem vivencia a recordação. Chavão por chavão, eu prefiro o de George
Orwell: “Quem controla o passado
é dono do futuro.” E falando em
passado, escreveu o saudoso Rubem Braga
(1913-1990) no jornal carioca Correio da
Manhã, no dia 8 de fevereiro de
1955: “Aconselho a todos que descansem um pouco de política (a
fórmula que ouvi ontem foi essa: “não vamos dar um golpe não, vamos dar um
jeito”) e procurem, no segundo ou terceiro dia da semana que vem, em qualquer
livraria, a Antologia Poética de
Vinicius de Moraes, da editora A
Noite”.
Observação: Atente
para a data do artigo e o conselho inicial, que não poderia ser mais atual.
Braga dizia
considerar Vinicius “um dos grandes
poetas do Brasil”, e que a seleção em questão, feita pelo próprio Vinicius com ajuda de Manuel Bandeira, incluía poemas de Caminho para a distância; Ariana, a mulher; Forma e exegese; Novos
poemas; Cinco elegias; Poemas, Sonetos e baladas; Pátria
minha e diversos poemas novos, escritos nos Estados Unidos ou durante a
última estada do poeta no Rio. E concluía “embolando” sem ordem nem rumo alguns
versos do poetinha, como eu reproduzo a seguir:
“Nas tardes da fazenda há muito azul demais. Minha
mãe manda comprar um quilo de papel na venda, quero fazer poesia. Se me
telefonarem só estou para Maria. Se for o ministro, só recebo amanhã. Se for um
trote, me chama depressa. Falarei baixo para não perturbar tua amiga
adormecida. Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza. Minha
barba é delicada na pele das mulheres. Na verdade, sou um homem de muitas
mulheres e com todas delicado e atento. Tende piedade, Senhor, do mocinho
franzino, três cruzes, poeta que só tem de seu as costelas e a namorada
pequenina, mas tende piedade ainda do impávido forte colosso do esporte e que
se encaminha lutando, remando, nadando, para a morte. Tende piedade das moças
pequenas das ruas transversais, que de apoio na vida só têm Santa Janela da
Consolação, e sonham exaltadas nos quartos humildes, os olhos perdidos e o seio
na mão. A minha namorada é uma nossa senhorazinha, é uma cigana, é uma coisa
que me faz chorar na rua, dançar no quarto, ter vontade de me matar e de ser
presidente da república. E morro nessas montanhas entre as imagens castanhas da
tua melancolia. Meu Deus, eu quero a mulher que passa. Eu posso me dizer do
amor (que tive): que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito
enquanto dure. E a vida passa depressa no morro do Cavalão entre tantas flores,
tantas flores tontas, parasitas, parasitas da nação. Não, tu não és um sonho,
és a existência. Oh, deixa-me brincar que te amo tanto, que se não brinco
choro, e desse pranto, desse pranto sem dor, que é o único amigo das horas más
em que não estás comigo. De repente do riso fez-se o pranto silencioso e branco
como a bruma, e das bocas úmidas fez-se a espuma, e das mãos espalmadas fez-se
o espanto. De repente não mais que de repente”.
Vinicius de
Moraes, sentenciou Sérgio Porto —
mais conhecido como Stanislaw Ponte
Preta —, não era um, era muitos. Se assim não fosse, explicou, seria o Vinicio de Moral. Mas nem por isso
deixou de ser alguém muito singular. Que o digam, para começar, suas nove
esposas, fartura conjugal amealhada ao longo de 67 anos. Para não falar, é
claro, de ainda mais fartos “amores contingentes”, como disse Simone de Beauvoir das ligações fugazes
ou colaterais. E sobretudo da quantidade de amigos que o autodeclarado “poeta e diplomata, o branco mais preto do
Brasil” deixou quando se foi, faz agora 40 anos, em 9 de julho de 1980.
Vários escreveram sobre o grande poeta — carinhosamente
chamado de “poetinha” —, que foi, também, um ótimo cronista, cuja produção no
gênero por certo renderia mais que suas deliciosas coletâneas publicadas em vida
— Para viver um grande amor e Para uma menina com um flor. Houve quem
falasse dele com carinho banhado em malícia — caso de Antônio Maria, que em “Evangelho
segundo Antônio” tomou Vinicius
como exemplo único de macho que, já distante do seio materno, “foi sempre
amamentado e amado pelas jovens mães dos outros”.
Fascinado pelas palavras, inclusive as de baixa
circulação, Otto Lara Resende, em “Escanção e luas”, voltou à “Balada de Pedro Nava”, de Vinicius, e desencravou ali um
“escanção” — alternativa, em português, para o francês sommelier, aquele sabe-tudo
dos vinhos, nos restaurantes. Não espanta, aliás, que tenha recorrido a essa
raridade verbal alguém como Vinicius,
que no poema “Sombra e luz” chegou a
inventar palavras indecifráveis, destinadas apenas a soar nos ouvidos de quem
as lê mesmo em silêncio: “Munevada glimou vestassudente”.
De todos os cronistas que o conheceram, o que mais
frequentemente escreveu sobre o poeta foi talvez Paulo Mendes Campos — autor, entre muitos textos, da crônica em
fragmentos “Plim e plão: Vinicius de
Moraes”, alentada e saborosa homenagem ao amigo a quem viu pela primeira vez
em 1943, em Belo Horizonte, numa noitada inesquecível em que o ouviu cantar “Stormy Weather” sob “um luar
torrencial”. Pouco depois de mudar-se para o Rio, em 1945, Paulo propôs e Vinicius
aceitou compor com ele um “Soneto a
quatro mãos”, cujo manuscrito o jovem confrade jamais descartaria. Em outra
ocasião, repórter além de cronista, ele botou o poeta para enumerar, em “Gostei e não gostei”, aquilo que o
encantara e decepcionara durante uns meses passados na Europa. Para sorte
nossa, Paulo Mendes Campos escreveu
também “Vinicius não tem fim”,
evocação que no livro “O mais estranho
dos países” ganharia título novo: “Casa
do Leblon”, sobre a residência do poeta, de sua primeira mulher, Tati, e Suzana e Pedro, os
filhos do casal, na primeira metade dos anos 1940.
Então recém-chegado de Minas, Paulo se maravilhou ali com o entra-e-sai de gente interessante das
letras & das artes — entre ela, em agosto de 1945, Pablo Neruda a declamar seu ainda inédito “Alturas de Machu Picchu”. Muito mais nos deu o cronista mineiro.
Sem que seus nomes sejam revelados, Vinicius
e Tati vão aparecer também em “Conhecemos de oitiva...”, feixe com
três historinhas sobre empregadas domésticas. O poeta protagoniza a de número
2. Vivendo então em Los Angeles, ele é arrancado do sono pela habitual zoeira
do rádio e da enceradeira — e, dessa vez, enfurecido, passa aos atos: só de
cueca, Vinicius salta da cama, sai
do quarto e “dá o bote” na faxineira, que, não fosse a intervenção de Tati, poderia ter morrido estrangulada.
(Ah, sim: a primeira historinha de “Conhecemos
de oitiva...” é sobre uma empregada que, bicho do mato do interior de
Minas, em Nova York pôs as manguinhas de fora e soltou inesperadas frangas ante
seus perplexos patrões, igualmente não nomeados na crônica: Helena e Fernando Sabino. Decidida a macaquear tudo o que fizesse a dona da
casa, a criatura, ao saber que havia um bebê a caminho, cuidou de atracar-se a
um marinheiro.)
Se Paulo Mendes
Campos propôs a Vinicius
parceria num soneto, Rubem Braga
dispensou lira alheia e escreveu sozinho um “Bilhete para Los Angeles” — cidade onde, na segunda metade dos anos
1940, o poeta servia como diplomata. Não se saiu mal na empreitada poética — já
não fosse a sua prosa empapada de poesia da boa.
Fica aqui minha modesta homenagem ao poetinha, morto em
9 de julho de 1980, com quem tive a honra e o privilégio de enxugar uma
garrafa de Black & White.
A HORA ÍNTIMA
Quem pagará o enterro e as floresSe eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: — Nunca fez mal...
Quem, bêbado, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: — Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: — Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançara um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: — Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: — Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Vininha, velho, saravá!
Com Humberto
Werneck