segunda-feira, 13 de julho de 2020

QUEM PAGARÁ O ENTERRO E AS FLORES...

“De 15 em 15 anos, o Brasil esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos”, disse Ivan Pinheiro Themudo Lessa (1935–2012) em algum momento dos 77 anos que viveu, parte em São Paulo, parte no Rio e, a partir de 1978, em Londres, onde perdeu a condição de protagonista do jornalismo e do pensamento nacionais que tinha em seus tempos de “O Pasquim”.  
Por ocasião da morte do jornalista, Ziraldo, hoje com 87 anos, lamentou: “Millôr (Fernandes), Chico (Anysio), e agora Ivan... Estou me sentindo ameaçado. A minha turma está se despedindo”. Em seu blog no G1, o Geneton Moraes Neto escreveu: “O Brasil deu um novo passo em direção à mediocrização ampla, geral e irrestrita: o coração de Ivan Lessa parou de bater”.  
Pessoalmente, acho que Lessa foi muito otimista em sua avaliação. Se ainda caminhasse entre os vivos, ele possivelmente reduziria sua expectativa de memorização dos tupiniquins para algo em torno de quinze dias. Se tanto. Afinal, o mundo gira e a Lusitana roda”, diz o bordão da centenária transportadora, dando a entender que, enquanto a Terra dá voltas em torno do próprio eixo, seus caminhões percorrem o planeta de cabo a rabo, entregando mudanças. 
O que tem uma coisa com a outra? Não sei. Talvez essas colocações sem pé nem cabeça tenham como raiz quase 150 dias de isolamento com os números da Covid-19 divulgados 24/7 pelo rádio e pela TV, a ponto de banalizar o tema ou de levar o ouvinte/espectador a se atirar pela janela, conforme a susceptibilidade de cada um.
Falando em mudanças e emissoras de rádio, a Band News FM, criada em março de 2005 e a pioneira em transmitir notícias 24 horas por dia em frequência modulada, nasceu com a proposta de oferecer aos ouvintes um jornal completo a cada 20 minutos, atualizado com as principais notícias do Brasil e do mundo — daí o bordão “em 20 minutos tudo pode mudar”. Em 2016, o site O Sensacionalista publicou que o bordão estava defasado diante dos atribulados acontecimentos da política nacional, e que seria mudado para “em 2 minutos tudo pode mudar”. Segundo o site, um diretor da rádio teria dito: “Temos observado que as mudanças acontecem muito mais rápido do que na década passada. O brasileiro já tem medo de ir ao banheiro e, quando voltar, estar na monarquia. Se for necessário passamos para dois segundos ou até mesmo milésimos”. 
Profecia pura: três anos depois, mais exatamente em novembro do ano passado, a Band News FM para “em 1 segundo tudo pode mudar”.
Relembrar o passado é viver duas vezes — ou sofrer duas vezes, conforme a lembrança e o ponto de vista de quem vivencia a recordação. Chavão por chavão, eu prefiro o de George Orwell: “Quem controla o passado é dono do futuro.” E falando em passado, escreveu o saudoso Rubem Braga (1913-1990) no jornal carioca Correio da Manhã, no dia 8 de fevereiro de 1955: “Aconselho a todos que descansem um pouco de política (a fórmula que ouvi ontem foi essa: “não vamos dar um golpe não, vamos dar um jeito”) e procurem, no segundo ou terceiro dia da semana que vem, em qualquer livraria, a Antologia Poética de Vinicius de Moraes, da editora A Noite”.
Observação: Atente para a data do artigo e o conselho inicial, que não poderia ser mais atual.  
Braga dizia considerar Vinicius “um dos grandes poetas do Brasil”, e que a seleção em questão, feita pelo próprio Vinicius com ajuda de Manuel Bandeira, incluía poemas de Caminho para a distância; Ariana, a mulher; Forma e exegese; Novos poemas; Cinco elegias; Poemas, Sonetos e baladas; Pátria minha e diversos poemas novos, escritos nos Estados Unidos ou durante a última estada do poeta no Rio. E concluía “embolando” sem ordem nem rumo alguns versos do poetinha, como eu reproduzo a seguir:
Nas tardes da fazenda há muito azul demais. Minha mãe manda comprar um quilo de papel na venda, quero fazer poesia. Se me telefonarem só estou para Maria. Se for o ministro, só recebo amanhã. Se for um trote, me chama depressa. Falarei baixo para não perturbar tua amiga adormecida. Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza. Minha barba é delicada na pele das mulheres. Na verdade, sou um homem de muitas mulheres e com todas delicado e atento. Tende piedade, Senhor, do mocinho franzino, três cruzes, poeta que só tem de seu as costelas e a namorada pequenina, mas tende piedade ainda do impávido forte colosso do esporte e que se encaminha lutando, remando, nadando, para a morte. Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais, que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação, e sonham exaltadas nos quartos humildes, os olhos perdidos e o seio na mão. A minha namorada é uma nossa senhorazinha, é uma cigana, é uma coisa que me faz chorar na rua, dançar no quarto, ter vontade de me matar e de ser presidente da república. E morro nessas montanhas entre as imagens castanhas da tua melancolia. Meu Deus, eu quero a mulher que passa. Eu posso me dizer do amor (que tive): que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure. E a vida passa depressa no morro do Cavalão entre tantas flores, tantas flores tontas, parasitas, parasitas da nação. Não, tu não és um sonho, és a existência. Oh, deixa-me brincar que te amo tanto, que se não brinco choro, e desse pranto, desse pranto sem dor, que é o único amigo das horas más em que não estás comigo. De repente do riso fez-se o pranto silencioso e branco como a bruma, e das bocas úmidas fez-se a espuma, e das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente não mais que de repente”.
Vinicius de Moraes, sentenciou Sérgio Porto — mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta —, não era um, era muitos. Se assim não fosse, explicou, seria o Vinicio de Moral. Mas nem por isso deixou de ser alguém muito singular. Que o digam, para começar, suas nove esposas, fartura conjugal amealhada ao longo de 67 anos. Para não falar, é claro, de ainda mais fartos “amores contingentes”, como disse Simone de Beauvoir das ligações fugazes ou colaterais. E sobretudo da quantidade de amigos que o autodeclarado “poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil” deixou quando se foi, faz agora 40 anos, em 9 de julho de 1980.
Vários escreveram sobre o grande poeta — carinhosamente chamado de “poetinha” —, que foi, também, um ótimo cronista, cuja produção no gênero por certo renderia mais que suas deliciosas coletâneas publicadas em vida — Para viver um grande amor e Para uma menina com um flor. Houve quem falasse dele com carinho banhado em malícia — caso de Antônio Maria, que em “Evangelho segundo Antônio” tomou Vinicius como exemplo único de macho que, já distante do seio materno, “foi sempre amamentado e amado pelas jovens mães dos outros”.
Fascinado pelas palavras, inclusive as de baixa circulação, Otto Lara Resende, em “Escanção e luas”, voltou à “Balada de Pedro Nava”, de Vinicius, e desencravou ali um “escanção” — alternativa, em português, para o francês sommelier, aquele sabe-tudo dos vinhos, nos restaurantes. Não espanta, aliás, que tenha recorrido a essa raridade verbal alguém como Vinicius, que no poema “Sombra e luz” chegou a inventar palavras indecifráveis, destinadas apenas a soar nos ouvidos de quem as lê mesmo em silêncio: “Munevada glimou vestassudente”.
De todos os cronistas que o conheceram, o que mais frequentemente escreveu sobre o poeta foi talvez Paulo Mendes Campos — autor, entre muitos textos, da crônica em fragmentos “Plim e plão: Vinicius de Moraes”, alentada e saborosa homenagem ao amigo a quem viu pela primeira vez em 1943, em Belo Horizonte, numa noitada inesquecível em que o ouviu cantar “Stormy Weather” sob “um luar torrencial”. Pouco depois de mudar-se para o Rio, em 1945, Paulo propôs e Vinicius aceitou compor com ele um “Soneto a quatro mãos”, cujo manuscrito o jovem confrade jamais descartaria. Em outra ocasião, repórter além de cronista, ele botou o poeta para enumerar, em “Gostei e não gostei”, aquilo que o encantara e decepcionara durante uns meses passados na Europa. Para sorte nossa, Paulo Mendes Campos escreveu também “Vinicius não tem fim”, evocação que no livro “O mais estranho dos países” ganharia título novo: “Casa do Leblon”, sobre a residência do poeta, de sua primeira mulher, Tati, e Suzana e Pedro, os filhos do casal, na primeira metade dos anos 1940.
Então recém-chegado de Minas, Paulo se maravilhou ali com o entra-e-sai de gente interessante das letras & das artes — entre ela, em agosto de 1945, Pablo Neruda a declamar seu ainda inédito “Alturas de Machu Picchu”. Muito mais nos deu o cronista mineiro. Sem que seus nomes sejam revelados, Vinicius e Tati vão aparecer também em “Conhecemos de oitiva...”, feixe com três historinhas sobre empregadas domésticas. O poeta protagoniza a de número 2. Vivendo então em Los Angeles, ele é arrancado do sono pela habitual zoeira do rádio e da enceradeira — e, dessa vez, enfurecido, passa aos atos: só de cueca, Vinicius salta da cama, sai do quarto e “dá o bote” na faxineira, que, não fosse a intervenção de Tati, poderia ter morrido estrangulada. (Ah, sim: a primeira historinha de “Conhecemos de oitiva...” é sobre uma empregada que, bicho do mato do interior de Minas, em Nova York pôs as manguinhas de fora e soltou inesperadas frangas ante seus perplexos patrões, igualmente não nomeados na crônica: Helena e Fernando Sabino. Decidida a macaquear tudo o que fizesse a dona da casa, a criatura, ao saber que havia um bebê a caminho, cuidou de atracar-se a um marinheiro.)
Se Paulo Mendes Campos propôs a Vinicius parceria num soneto, Rubem Braga dispensou lira alheia e escreveu sozinho um “Bilhete para Los Angeles” — cidade onde, na segunda metade dos anos 1940, o poeta servia como diplomata. Não se saiu mal na empreitada poética — já não fosse a sua prosa empapada de poesia da boa.
Fica aqui minha modesta homenagem ao poetinha, morto em 9 de julho de 1980, com quem tive a honra e o privilégio de enxugar uma garrafa de Black & White.
A HORA ÍNTIMA
Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: — Nunca fez mal...
Quem, bêbado, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: — Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: — Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançara um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: — Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: — Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?


Vininha, velho, saravá!
Com Humberto Werneck