segunda-feira, 20 de julho de 2020

SOBRE GILMAR MENDES, O GENOCÍDIO E A INTERVENÇÃO MILITAR NO MINISTÉRIO DA SAÚDE


Não fosse pelo “jornalismo funerário” que a pandemia de Covid-19 incorporou aos noticiários veiculados por emissoras de rádio e TV, tudo pareceria estar na mais perfeita normalidade (para não dizer “na mais santa paz”), tamanha a importância que a imprensa e as mídias sociais dedicam a questiúnculas de somenos, sobretudo quando elas são geradas pelo morubixaba da tribo tupiniquim ou estão de alguma forma a ele relacionadas.

Muito pouca coisa se aproveita do que o Presidente diz ou faz, e do pouco que se salva quase nada presta. Mesmo assim, o resultado da falta de escolha a que a parcela pensante do eleitorado foi submetida no segundo turno do pleito de 2018 continua sendo bem avaliado (para não dizer admirado) por algo entre 1/4 e 1/3 dos brasileiros — ou pelo menos é o que afirmam institutos de pesquisa de opinião pública como Datafolha, Ibope e assemelhados.

Observação: Por falar em institutos de pesquisa, quantas vezes você foi alvo dessas abordagens? Pois é. E lhe parece possível que a opinião dos cerca de 2 mil entrevistados (0,000095% da população) reflita o que pensam 210 milhões de brasileiros? Pois é.

Numa transmissão pela internet promovida pela revista IstoÉ, da qual participava também o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, o ministro Gilmar Mendes (que está gozando merecidas férias de meio de ano em Lisboa) afirmou que “o exército está se associando a um genocídio” — referindo-se, obviamente, ao fato de o ministério da Saúde permanecer acéfalo há dois meses, em meio a uma pandemia que contabiliza mais de 2 milhões de infectados e quase 80 mil mortos no Brasil.

Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção, é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”, disse o magistrado.

Depois que  Nelson Teich se demitiu, em 15 de maio, a Saúde ficou sob a baioneta do general Eduardo Pazuello, que cumpre sem questionar as ordens do capitão-presidente e aproveita sua interinidade para transformar a Pasta em cabide de emprego para colegas de farda. Isso sem mencionar o apagão de dados sobre infecções e mortes no mês passado, que só foi revertido após pressão da sociedade. 

Observação: Segundo o jornal Folha de S.Paulo, ao menos 28 fardados assumiram cargos variados, e a cloroquina ganha cada vez mais protagonismo nas políticas públicas oficiais do governo federal, para além da propaganda pessoal feita por Bolsonaro. O próprio Exército produziu milhões de unidades do medicamento sem eficácia comprovada contra a Covid-19. De acordo com o site Poder 3608.450 militares da reserva ocupam cargos em ministérios, comandos e tribunais militares, recebendo adicional de 30% sobre os salários. Teich havia substituído o também médico Luiz Henrique Mandetta. Ambas deixaram o cargo devido a divergências com o presidente Bolsonaro — um negacionista da gravidade da pandemia, contrário ao isolamento social e defensor do uso da cloroquina, que não tem eficácia comprovada contra a Covid-19.

Sem citar nominalmente o togado supremo, o Ministério da Defesa afirmou em nota que que “a mobilização das Forças Armadas começou antes da notificação de casos de coronavírus em território brasileiro, e que o efetivo empregado diariamente no enfrentamento ao coronavírus é de 34 mil militares, maior do que o da FEB na Segunda Guerra Mundial”. Dias depois, o general Fernando Azevedo e Silva adotou um tom mais duro: “trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia (...). Genocídio é definido por lei como ‘a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso’. Trata-se de um crime gravíssimo, tanto no âmbito nacional, como na Justiça internacional, o que, naturalmente, é de pleno conhecimento de um jurista”.

O general disse ainda que o Ministério da Defesa vai entrar com uma representação na PGR contra o magistrado, mas não explicou do que se trata exatamente essa representação (disse apenas que ela pedirá “a adoção das medidas cabíveis” após as críticas do ministro do Supremo. Pelo menos isso: medidas cabíveis são preferíveis às consequências imprevisíveis de outras notas militares. O comunicado foi subscrito por Edson Leal Pujol, chefe do Exército, Antônio Carlos Moretti Bermudez, chefe da Aeronáutica, e Ilques Barbosa Junior, chefe da Marinha. 

O ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, disse à Rádio Bandeirantes que a afirmação de Gilmar Mendesteve uma repercussão muito ruim” no meio militar, e o vice-presidente, o também general Hamilton Mourão, que Mendes criou “um incidente com o Ministério da Defesa”.

Mendes utilizou sua conta no Twitter para dizer que tem “absoluto respeito e admiração pelas Forças Armadas Brasileiras e a sua fidelidade aos princípios democráticos da Carta de 88, mas que não se furta a criticar a opção [do governo] de ocupar o Ministério da Saúde predominantemente com militares. A política pública de saúde deve ser pensada e planejada por especialistas, dentro dos marcos constitucionais. Que isso seja revisto, para o bem das Forças Armadas e da saúde do Brasil”.

Pode-se gostar ou não de Gilmar Mendes — e eu não gosto —, mas não se pode deixar de lhe dar razão nesse caso específico. Os generais agem (mais uma vez) como vestais ofendidas, recebendo (mal) críticas que retratam os fatos, gostem ou não os fardados. 

Na mesma data em que o governo Bolsonaro completou 500 dias, o médico Nelson Teich deixou o Ministério da Saúde devido a divergências com o presidente. De lá para cá se passaram apenas dois meses, mas o número de cadáveres produzidos pela Covid-19 mais que quintuplicou — de 14.962 em meados de maio a 78.772 no último sábado, de acordo com o Ministério da Saúde, que tem militares de mais e médicos, técnicos de saúde e especialistas em administração pública de menos.

Gilmar Mendes fez comentários “completamente afastados dos fatos”, disseram os fardados. Para Roberto Pompeu de Toledo, foram os militares que “atravessaram a linha da bola”, usando a metáfora do jogador de polo e vice-presidente Hamilton Mourão. Até porque os fatos estão bem à vista: dois ministros da Saúde demitidos, um general “interino” eternizado no posto e quase trinta outros militares no lugar dos quadros técnicos, enquanto o número de mortos caminha para a marca dos 80 mil e, sob a égide tipicamente bolsonarista da bagunça administrativa e do descaso pela dor alheia, o Brasil consolida-se como vice-campeão mundial da pandemia. Mais uma vez coube a uma voz do Judiciário uma denúncia que numa democracia avançada, com partidos políticos coesos, ideários claros e interesses identificáveis, caberia às forças do Parlamento.

Militares no governo não se limitam à Saúde; eles estão por toda parte, às vezes até parece que escondidos. Na semana passada a demissão, no Inpe, da pesquisadora Lubia Vinhas do cargo de coordenadora do setor que mede o desmatamento na Amazônia fez-nos saber que também esse órgão é dirigido por um militar, também ele um arrastado “interino”. Onde não estão, os militares emprestam a mão amiga à vanguarda da anarquia bolsonarista. O general Ramos, do time do Planalto, emitiu nota em defesa do “competente e dedicado” ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles — aquele da boiada —, vítima, segundo ele, de “sórdida campanha”. 

Há militares da ativa e da reserva no governo. Em teoria, os da reserva estão liberados para participar do governo, enquanto os da ativa, com um pé numa instituição de Estado, e outro em função política, enfrentariam situação constrangedora. Para o comum dos mortais, no entanto, general é general, seja da ativa ou da reserva, e a soma de uns e outros configura uma portentosa confusão entre o poder civil e o poder armado. 

As palavras de Gilmar Mendes, por mais que exageradas na retórica, representaram um alerta contra uma situação de muito proveito para Bolsonaro, cujos desvarios contam com a rede de segurança dos militares, e de desastre para o bom funcionamento e o prestígio das Forças Armadas. Se bem as interpretassem, os chefes militares concluiriam que o ministro do STF se pôs ao seu socorro. 

As Forças Armadas argumentam que não apoiam o governo nem se veem por ele representadas. Mas, como escreveu o colunista Ricardo Noblat: “a continuarem a tomar as dores de um governo que não apoiam nem representam, reforçarão as suspeitas de que o apoiam, sim, de que com ele se identificam, e de que essa história de ‘instituições do Estado’, como está na Constituição, não passa de letra morta”.