quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A FALA E A FALÁCIA

A democracia é o pior regime de governo, à exceção de todos os outros já experimentados ao longo da história” disse Sir Winston Churchill. Mas “o melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano”, ponderou esse mesmo estadista britânico.

Políticos se elegem para roubar e roubam para se reeleger. Usam a mentira como ferramenta de trabalho. Mas nada disso sensibiliza o eleitorado tupiniquim, que não aprende com os próprios erros e faz ouvidos moucos para a voz interior que o alerta de estar diante de mais uma farsa. E assim continua a eleger parlapatões desavergonhados e ladrões mal disfarçados, para depois se escandalizar com o produto pronto e acabado de sua própria ignorância, como demonstra a atual situação do Rio de Janeiro (tanto em nível estadual quanto municipal).

No discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro disse que “o Brasil sofre uma das mais brutais campanha de desinformação sobre a Amazônia”, embora, ainda segundo ele, seja “o país que mais preserva o meio ambiente historicamente”. Trata-se, evidentemente, de uma reedição mais elaborada de seu igualmente falacioso pronunciamento anterior, no qual ele enfatizou uma "política de tolerância zero" contra o crime ambiental. 

Observação: O MPF pediu nesta quarta-feira o afastamento do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O pedido foi feito dentro de uma ação por improbidade administrativa contra o ministro por conta da condução da política de proteção ambiental da sua gestão. A procuradora Márcia Zollinger afirma que a permanência de Salles no comando do ministério pode levar a Amazônia a um ponto de “não retorno”.

Bolsonaro é incapaz de enxergar um culpado no espelho. Segundo Josias de Souza, seu pronunciamento deixou evidente que a principal crise do Brasil não é sanitária nem ambiental, mas semântica. O capitão considera que, apesar de tudo, seu governo está dando certo. O problema é que, ao definir os quesitos, ao escolher os índices, ao fixar os critérios que levam à definição do que significa dar certo, o mundo provavelmente continuará tratando-o como uma vistosa vidraça, não como um estadista injustiçado.

Bolsonaro distorce os dados coletados pelo INPE e manobra para transferir o acompanhamento das queimadas para o Exército, enquanto o vice, general Hamilton Mourão — que comanda o Conselho da Amazônia — diz que os números "vêm sendo divulgados por algum inimigo interno, com o nítido propósito de desmoralizar o governo". Só que esse governo não precisa de inimigos para ser desmoralizado), pois vem sendo sistematicamente leniente com as ações ilegais na Amazônia e adjacências. Parafraseando Ricardo Salles na tão célebre quanto vergonhosa reunião interministerial de 22 de abril, “uma boiada e tanto vem sendo passada”.

Observação: A estratégia de Bolsonaro de não demitir Ricardo Salles em meio a incêndios descontrolados e aumento do desmatamento parece incoerente, mas segue um conjunto de princípios bastante claro. Para o capitão, é melhor pagar o custo econômico da não ratificação de acordos comerciais ou mesmo de boicotes contra produtos brasileiros do que perder o apoio político do pequeno produtor rural, do garimpeiro, dos grileiros e madeireiros, todos beneficiados pela desregulamentação ambiental. Tanto Salles quanto Ernesto Araújo são muito populares entre a base eleitoral bolsonarista, mas podem ter os cargos ameaçados se Biden derrotar Trump nas eleições de novembro. 

Se por um lado a narrativa de Bolsonaro afronta interlocutores internacionais, por outro arranca aplausos entusiasmados da caterva de descerebrados que vêm um “mito” no mitômano a quem veneram com a mesma devoção cega que a patuleia ignara dedica ao sumo sacerdote lulopetista. Basta lembrar que se ufanam de "não ter havido um único caso de corrupção em 20 meses de governo", embora o lobo mau ter vendido a alma ao diabo para se safar da investigação sobre a interferência na PF e os três porquinhos estarem atolados até os beiços em denúncias de rachadinha, lavagem de dinheiro, peculato, participação em atos antidemocráticos e disseminação de fake news, entre outras.

No país das ilusões onde vive o presidente, o fluxo de investimentos "comprova a confiança do mundo em nosso governo." No mundo real onde vivemos todos nós, entre janeiro e agosto deste ano US$ 15,2 bilhões deixaram o Brasil — o maior volume para o período desde 1982. Os investidores estrangeiros retiraram R$ 87,3 bilhões da Bolsa brasileira entre 1º de janeiro e o último dia 17 — quase o dobro dos R$ 44,5 bilhões que saíram durante todo o ano passado. 

Os dólares que rodavam pelo mundo esperando o nascer do Sol no Brasil espantaram-se com a penumbra. O coronavírus infectou 2020, e aos quase 140 mil mortos, à recessão e à fumaça que vem da Amazônia e do Pantanal juntou-se um mandatário que terceiriza 100% dos desacertos sanitários aos governadores e atribui as queimadas a índios e caboclos, como se quisesse mostrar ao dinheiro estrangeiro a porta de saída. E a situação tende a se agravar com a União Europeia aliando-se aos Estados Unidos nas questões ambientais, caso o democrata Joe Biden derrote Trump nas eleições de novembro.

Em seu discurso, o ídolo maior do Messias que não miracula referiu-se ao Sars-CoV-2 como “vírus chinês” (e nesse ponto lhe assiste razão) e acusou a ONU de ser "praticamente controlada" pelo país oriental (o que não deixa de ser verdade). "Estamos enfrentando uma batalha furiosa contra um inimigo invisível, o vírus chinês, que levou incontáveis vidas em 188 países", disse o homem da peruca laranja, que também acusou o governo chinês de não avisar corretamente o mundo sobre a transmissão comunitária no início da pandemia e de ter cancelado os voos domésticos, mas mantido os internacionais. 

Trump é muito popular entre os bolsomínions, e a ideia de que seu amado líder goza de acesso privilegiado à Casa Branca tem sido um trunfo político essencial para o capitão. Mas a parceria dos dois chefes de Estado não produziu quaisquer efeitos práticos. Bolsonaro não cumpriu a promessa de ajudar a derrubar Nicolas Maduro nem de reduzir a influência chinesa na América Latina, ao passo que os setores agrícola e siderúrgico brasileiros não tiveram acesso privilegiado ao mercado americano.

Na visão de uma parte significativa dos eleitores que votaram num deputado medíocre na expectativa de uma ruptura completa com o passado, as políticas externas radicais de Trump e de Bolsonaro tiveram a coragem de enfrentar os globalistas e as elites esquerdistas de todo o mundo, mas a possível vitória de Biden dividiria esse eleitorado, sem mencionar que serviria de modelo de como vencer um governante populista nas urnas, energizando uma série de candidatos centristas que desafiarão o capitão em 2022.

Com os EUA de Biden mudando de lado e, possivelmente, alinhando-se à Europa no que tange ao desmatamento na Amazônia, o cálculo político de Bolsonaro se tornaria insustentável. Ignorar os apelos dos europeus pelo combate ao desmatamento na Amazônia é uma coisa; enfrentar uma aliança entre EUA e Europa que ameaçaria isolar o Brasil economicamente em decorrência do seu fracasso em proteger a maior floresta tropical do mundo já é outra bem diferente. 

Enfim, nunca antes na história deste país um presidente fez de sua semelhança e amizade com seu equivalente americano um elemento tão central de sua personalidade política. Apesar de suas muitas diferenças — Trump tem um relacionamento problemático com as forças armadas, enquanto Bolsonaro venera os militares —, a edição tupiniquim estimulou ativamente a ideia de que seria um “Trump dos trópicos”. Não surpreende, portanto, que poucos líderes no mundo torçam tanto pelo pela vitória do peruquento nas próximas eleições quanto Jair Bolsonaro. À ver.