Há hoje no Brasil um cargo que não está previsto em nenhum dos 250 artigos da Constituição Federal, nem em qualquer de suas mais de 100 emendas, mas vale tanto como se estivesse, ou possivelmente mais: é o cargo, ou a função, de presidente do Poder Judiciário nacional.
Não se trata da cadeira de presidente do STF, que é
preenchida por um sistema de rodízio e vai sendo ocupada por qualquer um dos
onze ministros, mas qualquer um mesmo, à medida que chega sua vez. O
cargo de presidente do Poder Judiciário é outra coisa, muitíssimo diferente:
foi criado pouco a pouco, ao longo dos últimos anos, e serve para dar ao seu
ocupante a tarefa de realmente mandar no STF e, por tabela, no resto do
sistema de Justiça do país. Esse presidente do Judiciário é o ministro Gilmar
Mendes, que está no posto porque sabe entender e atender melhor que ninguém
os interesses materiais da casta que manda — de verdade — na vida pública do
Brasil
Tudo que tem alguma relevância para o Brasil, hoje em dia,
depende dele — pois os dois outros poderes, progressivamente, foram entregando
a sua autoridade para o STF, aceitaram uma posição explícita de
subordinação e agora suas decisões não valem nada, ou o equivalente a nada,
enquanto não forem aprovadas pelo Supremo. Como é o ministro Gilmar
quem de fato decide as coisas importantes no Tribunal, é nele que vale a pena
prestar atenção. O resto é o resto.
Já não basta ao presidente da República, no Brasil de hoje,
negociar com os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados para
governar o país; mais do que com eles, é preciso negociar com Gilmar Mendes.
Poucas vezes essa nova realidade ficou tão evidente como no caso da indicação
do ministro que vai ocupar a vaga que acaba de ser aberta no STF. Bolsonaro
teve de ir à casa de Gilmar e obter sua aprovação para o nome escolhido; é algo
sem precedentes na história brasileira.
O fato é que o nome que Bolsonaro foi encontrar no
Piauí e no Centrão para a vaga, e que conta com as orações mais devotas dos
inimigos da Lava-Jato e do seu combate contra a corrupção, só existe com a
bênção de Gilmar. Pouco interessa a opinião dos dez outros ministros —
que, de qualquer forma, não têm autoridade legal nessa escolha — ou do Senado,
a quem cabe, oficialmente, aceitar ou recusar a indicação do presidente da
República. O voto que conta, mesmo, é o de Gilmar.
Ele ganhou, é verdade, um probleminha inesperado: o desembargador
Kássio Nunes Marques, como se soube menos de uma semana após seu nome
vir a público, copiou trechos inteiros do texto escrito por um amigo e advogado
do Piauí naquilo que apresentou como a sua “tese” de doutorado na “Universidade
Autônoma de Lisboa” — que, aliás, não tem nada a ver com a verdadeira
Universidade de Lisboa, mas é um empreendimento particular que cobra “propinas”
(é assim que eles chamam as anuidades) de uns € 4 mil por ano, ou coisa
do gênero, de quem queira fazer algum curso por lá. Nada que o ministro Gilmar
não possa resolver, é claro.
Também é fato que o Senado engole qualquer coisa — aceitaria
um chimpanzé para o STF, se recebesse a ordem de aceitar. Mas, ainda
assim, será mais uma prova de seu comando a aprovação de um nome desses para
ficar no Supremo pelos próximos trinta anos. Se consegue colocar lá dentro até
o desembargador retrocitado, o que ele não conseguiria?
Os ministros do STF não foram colocados lá pelo
Parlamento da Nova Zelândia. O ministro Gilmar não foi nomeado para o
cargo de presidente do Poder Judiciário; também não foi imposto por ninguém,
nem chegou lá por meio de alguma ilegalidade. Está no posto porque, como dito
linhas atrás, sabe entender e atender melhor que ninguém os interesses
materiais da casta que manda — de verdade — na vida pública do Brasil. Ela é
formada pelos políticos, sobretudo os que têm problemas com o Código Penal,
a OAB e seus escritórios milionários de advocacia criminalista, os
devedores do Erário, as empreiteiras de obras, o consórcio
esquerda-direita-centrão, o alto funcionalismo público, os intelectuais
orgânicos, a ladroagem em geral, a elite em seu modo mais extremo, a turma do
ex-presidente Fernando Henrique, que o colocou no Supremo — enfim, vai
pondo.
Gilmar é, no fundo, o homem que realmente pode
resolver os problemas dessa gente toda — e agora, como se comprovou com a
indicação do novo ministro, também os problemas do presidente Bolsonaro.
É o herói de todos eles porque se tornou, mais do que qualquer outra coisa, o
garantidor número 1 da impunidade neste país — tem mandado soltar, como se
fosse uma questão de princípio, qualquer acusado de corrupção que lhe passe
pela frente, por conta daquilo que considera “ilegalidades processuais”. Fechou
o jogo pelos quatro cantos.
O STF brasileiro, com esses onze ministros que estão
lá hoje, não é fruto de um azar da natureza, como os terremotos e enchentes — é
fruto das escolhas políticas que vêm sendo feitas no Brasil nos últimos
trinta anos, das eleições dos presidentes da República às eleições de senadores
e deputados federais. Seus ministros não foram colocados lá pelo Parlamento
da Nova Zelândia. São o resultado direto e inevitável da vida política
brasileira; é dali que saem, como Eva saiu da costela de Adão.
Lula, Dilma, Bolsonaro? Temer, Aécio,
Rodrigo Maia? Renan Calheiros, Davi Alcolumbre? Dá tudo na
mesma. O STF que está aí é o STF que eles quiseram, e que a
maioria dos políticos eleitos no Brasil quis. Não adianta achar que os
responsáveis são outros — da mesma maneira que não adianta imaginar que o
Supremo teria um comportamento decente se não fosse comandado por Gilmar.
Os outros dez são mais ou menos iguais a ele — a diferença é que não sabem agir
com a mesma eficácia.
Cada dia é um dia, é claro, e não existe nada
definitivamente seguro debaixo da luz do sol. Mas a experiência tem mostrado
que o homem decisivo é o ministro Gilmar. O novo presidente do STF,
Luiz Fux, recém-chegado ao cargo, dá a impressão de estar tentando algo
diferente — acaba de transferir para o plenário, por exemplo, a decisão sobre
casos de corrupção hoje entregues à notória 2ª Turma, onde Gilmar reina
diretamente. Levou o troco na hora. “Não faz sentido chegar do almoço e receber
a notícia que tem [sic] uma reforma regimental que será votada”, disse Gilmar.
“Não é assim que se procede.” Fazer isso, no seu entender, seria como baixar um
“Ato Institucional”.
Foi uma bronca e tanto; vamos ver, a partir de agora, até
onde o ministro Fux vai chegar com sua independência. Um que tentou
antes foi o ministro Luís Roberto Barroso — chegou a dizer em plenário
que Gilmar era “uma pessoa horrível” e “uma desonra para todos nós”.
De lá para cá, parece que baixou o facho; não se ouviu mais nada de relevante
em que tivesse se colocado contra o presidente do Judiciário.
O ministro Gilmar Mendes não é nenhuma anomalia de
circo, como a mulher barbada ou o bezerro de duas cabeças. É o retrato exato
deste STF que está aí — e da Justiça brasileira tal como ela funciona
hoje.
Com J.R. Guzzo