“Jamais botei fé no capetão, porém nunca imaginei que sua passagem pela Presidência pudesse ser tão desastrosa”, escrevi no post da última sexta-feira. Mas diz um adágio popular que “nada é totalmente bom ou totalmente ruim”. No livro Memórias de um Chefe de Polícia, o delegado Adriano Peralta esposa essa tese quando diz que “a geada destrói a plantação, mas também extermina as pragas e prepara a terra para uma safra abundante”. Vivaldo José Breternitz, professor da Faculdade Presbiteriana Mackenzie, segue na mesma direção ao dizer que “a pandemia (da Covid-19) é péssima, mas reduziu a poluição do ar”.
Motivado por essas pérolas de sabedoria, escarafunchei os
escaninhos da memória em busca de alguma proeza bolsonariana que me pudesse ter
passado despercebida. Afinal, outro obelisco da sabedoria popular ensina que “quem
procura acha”. E como a perseverança é o preço da vitória, encontrei uma
das poucas bandeiras que o capitão-cloroquina levantou durante a campanha e não
enfiou em local incerto e não sabido ao subir a rampa palaciana: extinguir o
aziago “horário de verão”.
Errar é humano. Bolsonaro... bem, às vezes ele parece
humano. E deve ser, a julgar pela interminável fieira de erros que cometeu, comete
e continuará a cometer enquanto permanecer no cargo — isso não significa que
deixará de cometê-los quando não for mais presidente, apenas que o impacto de suas bolsonarices será menor.
Em mensagem ao Antagonista, o deputado pepista Fausto Pinato disse que Bolsonaro foi “emparedado pela ala olavista e iludido de que poderia impor a hierarquia militar nas instituições brasileiras”. E que cometeu “quatro erros” (uma estimativa pra lá de bondosa, mas enfim...), a saber:
1) atacar os Poderes Judiciário e Legislativo;
2) achar que as Forças Armadas apoiariam a insana estratégia do gabinete do ódio;
3) achar que indicar Augusto Aras lhe garantiria o apoio da PGR;
4) achar que, trocando o ministro da Justiça, poderia interferir nos trabalhos da Polícia Federal.
“O pior
de tudo”, concluiu o deputado, “é que grande parte dos bolsonaristas
continua agindo como se nada estivesse acontecendo, a exemplo do ainda ministro
da Educação”.
No que concerne às Forças Armadas, o ilustre jornalista
Roberto Pompeu de Toledo vai mais fundo. Confira um trecho de sua coluna
na edição de Veja desta semana:
(...) Ao afirmar num evento virtual que os militares “não
querem participar da política governamental nem da política do Congresso
Nacional, e muito menos querem que a política penetre nos quartéis”, e
reiterar no dia seguinte que as Forças Armadas “não são instituições de
governo”, mas “de Estado, permanentes”, o comandante do Exército, Edson
Pujol, disse o óbvio — mas um óbvio tão ululante que doeu nos ouvidos do
presidente. Será o prenúncio de nova fase entre as partes? Recapitulemos como
esse relacionamento evoluiu até aqui.
Fase 1 — Rumo ao golpe. Foi a época do
Carnaval antidemocrático nos fins de semana de Brasília. A saudade da ditadura
estava no ar, e em certos dias os generais palacianos Heleno e Ramos dividiram
a cena com o exultante Bolsonaro. Numa ocasião o ministro da Defesa, Fernando
de Azevedo e Silva, embarcou com o presidente no helicóptero que,
triunfante, sobrevoava a massa golpista. Até em frente ao Q.G. do Exército
ocorreu manifestação, e se houve oficial ultrajado com a usurpação do cenário, ficou
calado. Para a aliança firmada ainda na campanha eleitoral entre o então
candidato e o então comandante do Exército, general Villas Bôas, o céu
parecia o limite, sendo o céu o dia em que os generais entronizariam o capitão
num regime sem as aborrecidas travas do Congresso, do STF e da imprensa.
Fase 2 — Aparece o Queiroz. A irrupção
em cena do mais valioso servidor da Casa Bolsonara, flagrado no
esconderijo arranjado por um advogado da família, mudou o jogo. A partir de
agora o golpe se confundiria com uma operação de salvamento da firma Presidente
& Filhos das encrencas com rachadinhas, milícias e quejandos. Seria
demais. O presidente baixou o tom e abrigou-se do impeachment sob as asas dos
anjos do Centrão. Não que houvesse descontinuidade nas políticas de destruição
ambiental, desmanche cultural, ojeriza aos direitos humanos, administração
assassina da saúde e putrefação das relações exteriores, mas o governo se
cobriu de um verniz de paz e amor.
Fase 3 — Saliva e pólvora. Nas últimas semanas
o verniz explodiu em estilhaços de som e fúria, delírio e tormenta. A
intemperança presidencial tem sido debitada ao acúmulo de infelicidades: filho
denunciado por peculato, Donald Trump derrotado, mau desempenho nas
eleições municipais. Nesse clima chegou-se ao discurso que, de um jato só,
parvo e desembestado, começou por classificar os brasileiros de maricas diante
do coronavírus e terminou com a ameaça de lascar pólvora nos americanos. “Pólvora”
tem a ver com Forças Armadas. Era lançá-las ao ridículo, de quebra com o
Brasil. Três dias depois, veio a declaração do comandante do Exército. “É
uma relação a que se pode dar o nome de ‘o capitão e seus generais’”.
“Colocar os militares no centro da arena política
significa colocar representantes de uma organização opaca e radicalmente
vertical no centro de um regime político que se fundamenta justamente no
oposto, isto é, na transparência e em relações horizontais”, escrevem os pesquisadores
Octávio Amorim Neto e Igor Acácio. “É justamente por possuírem
essas duas características que o Poder Legislativo e as agremiações partidárias
são as instituições basilares da democracia.” Em outra passagem, Amorim
e Acácio recorrem ao pensamento do general da reserva Francisco Mamede
Brito Filho segundo o qual “missões militares” são apenas as de natureza
militar. “Um militar da ativa que integra o governo dizendo-se cumpridor de
uma missão encerra uma mensagem institucional flagrantemente distorcida.”
Bolsonaro um dia vai passar, com a ajuda conjugada
dos eleitores, dos tribunais e dos céus, e as Forças Armadas ficarão. A
manifestação de Pujol não é tudo — falta proibir o recrutamento de
oficiais da ativa (como o infeliz ministro da Saúde) e frear a sedução das
“boquinhas” no governo, entre muitas outras coisas —, mas vai no sentido de
resgatar a manchada reputação da instituição armada. Tanto as palavras do
comandante doeram nos ouvidos de Bolsonaro que ele reagiu. Concordou,
num tuíte, que as Forças Armadas devem permanecer apartidárias, mas acrescentou
que elas se encontram “sob a autoridade suprema do presidente da República”.
Até lembrou que Pujol foi escolhido por ele para comandante do Exército,
uma insinuação de que pode demiti-lo.
Algo estremece na relação à qual o historiador do futuro pode dar o título paradoxal de “O capitão e seus generais”.