Com a vacina no horizonte, a dois meses de completar 80 anos, a Covid-19 me visitou. Se a ideia era me matar na praia, o vírus perdeu. Tornou-se apenas uma memória no meu sangue, na forma de IgG reagente. Um retrato na parede, como dizia Drummond.
Pouca febre, muita dor de cabeça: é bom vencer uma batalha,
mesmo sabendo que, no final, perde-se a guerra. Ainda assim, estarei na fila da
vacina. Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas a Covid-19
tem negado essa crença popular.
Bolsonaro está tirando o bumbum da seringa. E o faz
em situações diferentes. Em primeiro lugar, quer que as pessoas assumam um
termo de responsabilidade ao tomar a vacina. Ele não leu a Constituição no
trecho que afirma que a saúde como direito de todos é dever do Estado.
Em segundo lugar, afirma que não vai se deixar vacinar e
ponto final. Em muitos lugares do mundo, os estadistas se vacinam em público
para estimular as pessoas. Obama, Clinton e Bush se
dispuseram a isso. O vice-presidente dos EUA o fez. A rainha da Inglaterra
espera na fila de vacinação.
Depois de muito resistir à CoronaVac, que chama de
vacina chinesa, Bolsonaro decidiu autorizar o general Pazuello a
comprá-la, no Instituto Butantan.
Aqui, o movimento de tirar o bumbum da seringa é mais sutil.
Ele percebeu que não será fácil conseguir vacinas rapidamente, além da CoronaVac.
E o exame cotidiano das pesquisas mostra que a incapacidade de oferecer vacinas
derrubará seus índices de popularidade.
A ideia de sabotar a CoronaVac não era boa. Na década
de 1980, no auge da epidemia de aids, o governo francês sabotou uma técnica de
exame de sangue, formulada pelo Abbott. Havia uma iniciativa semelhante,
porém mais atrasada, no Instituto Pasteur.
Quando se descobriu que o governo empurrou com a barriga a
licença de uma técnica que salvaria muitas vidas, foi um deus-nos-acuda.
Famílias de hemofílicos entraram na Justiça, houve até uma tentativa de
explodir uma bomba. Para simplificar a história: dois diretores do Centro
Nacional de Transfusão de Sangue foram condenados a quatro e dois anos de
cadeia. São eles Michel Garreta e Jean-Pierre Allain.
Em síntese: atrasar por razões políticas uma vacina que
possa salvar vidas dá cadeia. É importante que os militares da Anvisa
saibam disso. O próprio general Pazuello também deveria entender. Se for
difícil para ele, sempre haverá alma caridosa para explicar com desenhos e
animação.
Outro dia, vi nas redes um vídeo em que Pazuello,
numa festa, cantava “Esperando na janela”. O ministro da Saúde cantando
numa festinha, em plena pandemia, é sempre estranho. Ele já teve Covid.
Foi tratado com todos os recursos disponíveis, não lhe faltou leito.
Ao dizer em discurso que não entende a ansiedade de todos
nós, o general se esquece de milhões de pessoas que têm medo de não encontrar
vaga em hospital, medo da falta de ar, medo de ser intubadas, medo da morte.
A frase de Pazuello é a versão edulcorada do “país de
maricas” que Bolsonaro enunciou num dos seus discursos no Planalto. No
fundo, são pessoas que não entendem o medo em nossa economia psíquica, muito
menos as qualidades do feminino. Associam ideias estupidamente.
Percebo agora como subestimei o perigo que Bolsonaro
representava em 2018. Calculava apenas a ameaça à democracia e contava com os
clássicos contrapesos institucionais: STF e Congresso, imprensa.
Não imaginei que um presidente poderia enfrentar uma tragédia como o
coronavírus ou precipitar dramaticamente a tragédia anunciada pelo aquecimento
global.
Os Estados Unidos passaram por um flagelo semelhante e o
superaram, apesar das marcas. A versão tropical é mais devastadora, não só pela
profundidade da ignorância de Bolsonaro, mas também pelas
circunstâncias.
Trump deixa os Estados Unidos com pelo menos uma
vacina produzida nos EUA e quantidade de doses contratada suficiente para
imunizar o país. No seu lugar, entra Biden: consciência ambiental e
sintonia absoluta com a ciência no combate ao coronavírus.
Não tenho dúvidas de que também vamos acordar do pesadelo.
Mas uma importante tarefa, assim como aconteceu com uma geração de intelectuais
alemães no pós-guerra, será estudar as causas disso tudo: as raízes no
imaginário nacional que nos tornam tão vulneráveis à barbárie, tão seduzidos
pelo discurso da estupidez.
Texto de Fernando Gabeira