Arthur Lira, Rodrigo
Pacheco e Jair Bolsonaro dançaram em Brasília uma coreografia da enganação.
Foi executada em dois movimentos. Num, os novos chefes da Câmara e do Senado
divulgaram um comunicado que coloca no topo das prioridades do Legislativo
garantir "todos os recursos" para acelerar a vacinação dos
brasileiros. Noutro lance, Lira e Pacheco foram abraçar o apoiador Jair Bolsonaro, que recitou defronte
das câmeras da mídia "canalha" o seguinte: "Imperará a harmonia entre nós."
Os três patetas, digo, bailarinos sabem que constroem uma
realidade alternativa. Não é por falta de "recursos", mas por inépcia
do presidente que mais de mil brasileiros morrem por dia sem receber uma dose
de vacina. A "harmonia entre nós"
acabará no instante em que Bolsonaro
deixar de saciar o apetite fisiológico da tropa que elegeu Lira e Pacheco.
No Brasil paralelo em que os chefes do Legislativo e do
Executivo decidiram viver, os comentários são edificantes. "Nossa vinda aqui — como gesto de harmonia,
equilíbrio sobre todos os aspectos, mantendo sempre a independência — configura
um novo momento deste ano de 2021 para o Brasil", disse Lira, ainda sob os efeitos do champanhe
que mandou servir para os 300 convidados que se aglomeraram numa festança
antissanitária realizada na noite de sua eleição. "Este diálogo não começou hoje, começou durante a própria campanha",
ecoou Bolsonaro. Incumbido de
traduzir o espírito da conversa que tiveram com o presidente da República, Pacheco disse ter ficado entendido que
a prioridade do governo federal é o enfrentamento "seguro, ágil e inteligente" da pandemia "com a disponibilização de vacinas."
Ainda que se admita que todos os políticos mentem, o perigo
não está apenas na empulhação. O problema é o mentiroso acabar acreditando no que
afirma. Ou pior: imaginar que está liberado para declarar qualquer coisa, no
pressuposto de que não restaria ao brasileiro senão acreditar no inacreditável.
Não é preciso atrasar muito o relógio para recordar que a
vacinação virou um problema por causa de Bolsonaro.
E não foi a oposição que o deixou em apuros. Nada foi mais corrosivo para o
prestígio do presidente do que as cenas de vacinação que começaram a chegar do
exterior, pela televisão, no final do ano. O início da vacinação no estrangeiro
deixou-o zonzo. "Eu não dou bola
pra isso", disse ele às vésperas do Ano Novo. Dias antes, afirmara o
oposto: "Temos pressa em obter uma
vacina segura, eficaz e com qualidade..." Noutra manifestação, culpou
os fabricantes pela falta de vacinas. "O Brasil tem 210 milhões de habitantes. Um mercado consumidor, de
qualquer coisa, enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em
vender para a gente? Por que eles, então, não apresentam documentação na
Anvisa? Quem quer vender... Se eu sou vendedor, eu quero apresentar."
Os compradores ainda fazem fila na porta dos laboratórios.
Não é que os produtores de vacina tenham esquecido o mercado brasileiro. A
questão é que o governo Bolsonaro
jogou suas melhores fichas no imunizante da Oxford-AstraZeneca, que atrasou. Esnobou todo o resto, enquanto
outros países iam às compras. A Pfizer
tentou vender sua vacina ao Brasil desde agosto de 2020. A pasta da Saúde não
teve interesse. Em outubro, Bolsonaro
mandou rasgar o compromisso de compra de 46 milhões de doses da chinesa CoronaVac, testada no Brasil pelo Instituto Butantan. Agora, o governo
compra 100 milhões de doses fazendo cara feia.
Lira e Pacheco não disseram nada quando Bolsonaro, em agosto do ano passado,
defendeu a liberdade do brasileiro de não se vacinar. Silenciaram em outubro,
quando o capitão disse que vacina obrigatória era coisa só para o Faísca, cachorro da família Bolsonaro. Continuaram calados em
novembro, mês em que Bolsonaro
celebrou como vitória pessoal a morte de um voluntário dos testes conduzidos
pelo Butantan. Era suicídio, não efeito da vacina.
Além de vacinas, Lira e Pacheco prometeram devolver o "auxílio emergencial para aqueles brasileiros e brasileiras que estejam
enfrentando a miséria em razão da falta de oportunidade causada pela paralisia
econômica provocada pela pandemia." Farão isso "respeitando o teto de gastos".
Esse lero-lero não é novo. Sabia-se que o socorro emergencial acabaria em
dezembro. Desde então, presidente, ministros e parlamentares prometem colocar
um novo programa de renda mínima no lugar. Desperdiçaram seis meses dizendo
coisas definitivas sem definir muito bem as coisas. Depois de discutir a fome
alheia numa sucessão de almoços e jantares, as autoridades de Brasília
decidiram empurrar a definição sobre as fontes de financiamento do novo
programa para o final de 2020. Alegou-se que havia uma eleição municipal no
caminho.
"A eleição não é
boa conselheira", disse na época o senador Márcio Bittar, relator do Orçamento da União. Segundo ele todos
concordaram com o adiamento, inclusive Bolsonaro.
Só o brasileiro miserável não foi consultado. Abriram-se as urnas municipais. E
nada. Nem o Orçamento da União o Congresso se dignou a votar. Agora, o ministro
Paulo Guedes já admite tirar o pé da
porta, desde que Lira e Pacheco consigam destravar as reformas
econômicas, cuja prioridade reafirmaram no comunicado conjunto desta
quarta-feira.
Bolsonaro
entregou à dupla a lista de propostas que seu ministro da Economia considera
vitais. Os "canalhas" da imprensa não puderam fazer perguntas. De
modo que não se sabe ainda quais são os itens da pauta do governo. São "assuntos voltados, obviamente, para a
pandemia, para a saúde, economia e reformas do Estado", limitou-se a
dizer Bolsonaro. Resta ao brasileiro
acreditar que a coisa agora vai funcionar. Afinal, como declarou o réu Arthur Lira, convertido em herói da
resistência de Bolsonaro, o encontro
dos chefes dos Poderes "configura
um novo momento deste ano de 2021 para o Brasil."
Com Josias de Souza.