Para além de um mandatário obtuso e de um Congresso fisiologista, contaminado pelo vírus da corrupção, que trabalha três dias por semana e dedica a maior parte do tempo a questões do interesse de seus integrantes, temos uma Corte Suprema dividida em alas garantista e punitivista, que ignora as próprias regras em decisões monocráticas estapafúrdias e promove barracos que enrubesceriam cafetinas de de lupanares de quinta categoria. Um exemplo lapidar foi o entrevero ocorrido durante uma sessão plenária em março de 2018, quando o todo-poderoso Gilmar Mendes aproveitou seu voto para criticar a construção da pauta no plenário e citou "manobras" dos ministros para votarem determinados processos: "ah, agora vou dar uma de esperto e conseguir a decisão do aborto, de preferência na turma com dois, três ministros".
Luís Roberto Barroso,
alvo velado da crítica do colega, respostou de bate-pronto: "Me deixa de fora desse seu mau sentimento.
Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com atraso e pitadas de
psicopatia. (...) É um absurdo V. Exa. aqui fazer um comício, cheio de ofensas,
grosserias. V. Exa. não consegue articular um argumento. Já ofendeu a
presidente, já ofendeu o ministro Fux, agora chegou a mim. A vida para V. Exa.
é ofender as pessoas. Não tem nenhuma ideia. Nenhuma. Só ofende as pessoas.
Qual é sua ideia? Qual é sua proposta? Nenhuma! É bílis, ódio, mau sentimento,
mal secreto, uma coisa horrível. V. Exa. nos envergonha, V. Exa. é uma desonra
para o tribunal. Uma desonra para todos nós. Um temperamento agressivo,
grosseiro, rude. É péssimo isso. V. Exa. sozinho desmoraliza o Tribunal. É
muito penoso para todos nós termos que conviver com V. Exa. aqui. Não tem
ideia, não tem patriotismo, está sempre atrás de algum interesse que não o da
Justiça. Uma vergonha, um constrangimento."
Muita água rolou desde então. Cármen Lúcia foi sucedida na presidência da Corte pelo ministro
cuja lista de atributos pode ser conferida nesta postagem, e que, dois anos
depois, foi sucedido por Luiz Fux.
Mas quem manda de fato no supremo terreiro é o fabuloso semideus togado Gilmar Ferreira Mendes, que teve os
divinos ombros recobertos pela suprema toga por FHC, o que comprova para além de qualquer dúvida razoável que o
grão duque tucano deixou, sim, uma herança
maldita, mas que nada tem a ver
com a aleivosia cantada em prosa e verso por Lula e seus acólitos descerebrados.
Apelidado de Maritaca de Diamantino pelo impagável Augusto Nunes, brilhantemente definido como
“fotografia ambulante do
subdesenvolvimento brasileiro, mais um na multidão de altas autoridades que
constroem todos os dias o fracasso do país” por J.R. Guzzo e acusado de representar sério risco à proteção dos
direitos no Brasil, ao combate à corrupção e à própria normalidade
constitucional pelo professor Dalmo
Dallari, o ministro-deus ocupa um cargo que não está previsto em nenhum dos
250 artigos da Constituição Federal ou em qualquer de suas mais de 100 emendas,
mas vale tanto como se estivesse, ou possivelmente mais: o cargo de presidente do Poder
Judiciário nacional. Não se trata da cadeira de presidente
do Supremo, que é preenchida
por um sistema de rodízio e vai sendo ocupada por qualquer um dos onze
ministros — mas qualquer um mesmo
— à medida que chega sua vez.
Observação: A
maneira como se dá a escolha dos togados está prevista na Constituição, que é nossa lei maior. Mas o próprio Ulisses Guimarães reconheceu que a Carta
promulgada em 1988, para além de tudo que deveria ser regulamentado via lei
ordinária, continha falhas e lacunas a sanar e preencher. A questão da escolha
dos togados deveria ter sido mudada há décadas. Quando mais não seja porque é
vexatório um candidato à suprema toga sair beijando mãos pelos gabinetes do Senado
(não custa lembrar que o Congresso está eivado de corruptos, encrencados com a
Justiça, gente que o pretenso futuro ministro supremo poderá vir a a jugar). Integrar
a Suprema Corte é o ápice da magistratura
e o sonho de consumo de juízes, advogados e assemelhados, mas por alguma razão
os membros da corte, referidos como ministros do Supremo Tribunal Federal, são
escolhidos pelo presidente da República entre os cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e
reputação ilibada. Ou seja, você não precisa ter registro na OAB — e nem mesmo ter cursado Direito —
para se candidatar a uma boquinha bem remunerada e vitalícia (a aposentadoria é
compulsória aos 75 anos de idade, mas inexiste prejuízo salarial). Basta ter
Q.I. (de “Quem Indica”), ou seja, conhecer as pessoas certas e puxar os sacos
certos.
Voltando ao cargo de presidente do PJ foi criado pouco a
pouco, ao longo dos últimos anos, e serve para dar ao seu ocupante a tarefa de
realmente mandar no STF e,
por tabela, no resto do sistema de Justiça do país. O atual presidente do
Judiciário é Gilmar Ferreira Mendes,
que ocupa o cargo porque sabe entender e atender melhor que ninguém os
interesses materiais da casta que manda — de verdade — na vida pública do
Brasil. Tudo que tem alguma relevância para o Brasil, hoje em dia, depende dele
— pois os dois outros poderes, progressivamente, foram entregando a sua
autoridade para o STF,
aceitaram uma posição explícita de subordinação e agora suas decisões não valem
nada, ou o equivalente a nada, enquanto não forem aprovadas pelo Supremo. Como é o ministro Gilmar quem de fato decide as
coisas importantes no Tribunal, é nele que vale a pena prestar atenção. O resto
é o resto.
Já não basta ao presidente da República negociar com os
presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados para governar o país;
mais do que com eles, é preciso negociar com Gilmar. Poucas vezes essa nova realidade ficou tão evidente como no
caso da indicação de Kássio Nunes,
que só foi formalizada depois que Bolsonaro
foi à casa Gilmar e obter sua benção
(e o aval de Toffoli e Alcolumbre) para o nome escolhido; é
algo sem precedentes na história brasileira.
O fato é que o nome que o capitão-cloroquina foi encontrar
no Piauí e no Centrão para a vaga — uma resposta divina às orações mais devotas
dos inimigos da Lava-Jato e do seu
combate contra a corrupção — só existiu com a bênção de Gilmar. Nem a opinião dos dez outros
ministros — que, de qualquer forma, não têm autoridade legal nessa escolha —,
nem a do Senado — a quem cabe, oficialmente, aceitar ou recusar a indicação do
presidente da República — fez a menor diferença. Quem dita as regras e dá as
cartas é Gilmar.
Como dito no capítulo anterior, o latte do desembargador piauiense
tinha algumas inconsistências, como se soube menos de uma semana após seu nome
vir a público. O magistrado teria copiado trechos inteiros do texto escrito por
um amigo e advogado do Piauí naquilo que apresentou como a sua “tese” de
doutorado na “Universidade Autônoma de Lisboa” — que, aliás, não tem nada a ver
com a verdadeira Universidade de Lisboa, mas é um empreendimento particular que
cobra “propinas” (é assim que eles chamam as anuidades) de uns € 4 mil por ano, ou coisa do
gênero, de quem queira fazer algum curso por lá. Nada que o ministro Gilmar não pudesse resolver, é
claro, como também é claro que o Senado engole qualquer coisa — aceitaria um
chimpanzé para o STF, se
recebesse a ordem de aceitar.
Os ministros do STF não
foram colocados lá pelo Parlamento da Nova Zelândia. O ministro Gilmar não foi nomeado para o
cargo de presidente do Poder Judiciário;
também não foi imposto por ninguém, nem chegou lá por meio de alguma
ilegalidade. Está no posto porque, como dito linhas atrás, sabe entender e
atender melhor que ninguém os interesses materiais da casta que manda — de
verdade — na vida pública do Brasil. Ela é formada pelos políticos, sobretudo os que têm problemas com o Código
Penal, a OAB e seus
escritórios milionários de advocacia criminalista, os devedores do Erário, as
empreiteiras de obras, o consórcio esquerda-direita-centrão, o alto
funcionalismo público, os intelectuais orgânicos, a ladroagem em geral, a elite
em seu modo mais extremo, a turma do ex-presidente Fernando Henrique, que o colocou no Supremo — enfim, vai pondo.
Gilmar é, no
fundo, o homem que realmente pode resolver os problemas dessa gente toda — e
agora, como se comprovou com a indicação do novo ministro, também os problemas
do presidente Bolsonaro. É o
herói de todos eles porque se tornou, mais do que qualquer outra coisa, o
garantidor número 1 da impunidade neste país — tem mandado soltar, como se
fosse uma questão de princípio, qualquer acusado de corrupção que lhe passe
pela frente, por conta daquilo que considera “ilegalidades processuais”. Fechou
o jogo pelos quatro cantos.
O STF brasileiro,
com esses onze ministros que estão lá hoje, não é fruto de um azar da natureza,
como os terremotos e enchentes — é
fruto das escolhas políticas
que vêm sendo feitas no Brasil nos últimos trinta anos, das eleições dos
presidentes da República às eleições de senadores e deputados federais.
Seus ministros não foram colocados lá pelo Parlamento da Nova Zelândia. São o
resultado direto e inevitável da vida política brasileira; é dali que saem,
como Eva saiu da costela
de Adão.
Lula, Dilma, Bolsonaro? Temer, Aécio, Rodrigo Maia? Renan
Calheiros, Davi Alcolumbre?
Dá tudo na mesma. O STF que
está aí é o STF que eles
quiseram, e que a maioria dos políticos eleitos no Brasil quis. Não adianta
achar que os responsáveis são outros — da mesma maneira que não adianta
imaginar que o Supremo teria um comportamento decente se não fosse comandado
por Gilmar. Os outros dez são
mais ou menos iguais a ele — a diferença é que não sabem agir com a mesma
eficácia.
Cada dia é um dia, é claro, e não existe nada
definitivamente seguro debaixo da luz do sol. Mas a experiência tem mostrado
que o homem decisivo é o ministro Gilmar.
O novo presidente do STF, Luiz Fux, recém-chegado ao cargo, dá a
impressão de estar tentando algo diferente — acaba de transferir para o
plenário, por exemplo, a decisão sobre casos de corrupção hoje entregues à
notória 2ª Turma, onde Gilmar reina
diretamente. Levou o troco na hora. “Não faz sentido chegar do almoço e receber
a notícia que tem [sic] uma reforma regimental que será votada”, disse Gilmar. “Não é assim que se procede.”
Fazer isso, no seu entender, seria como baixar um “Ato Institucional”.
Foi uma bronca e tanto; vamos ver, a partir de agora, até
onde o ministro Fux vai
chegar com sua independência. Um que tentou antes foi o ministro Luís Roberto Barroso (detalhes no
capítulo anterior). De lá para cá, parece que baixou o facho; não se ouviu mais
nada de relevante em que tivesse se colocado contra o presidente do Judiciário.
O ministro Gilmar
Mendes não é nenhuma anomalia de circo, como a mulher barbada ou o
bezerro de duas cabeças. É o retrato exato deste STF que está aí — e da Justiça brasileira tal como ela
funciona hoje.
Com J.R. Guzzo