quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

LULA LÁ... BEM LONGE! (PARTE III)

Para além de um mandatário obtuso e de um Congresso fisiologista, contaminado pelo vírus da corrupção, que trabalha três dias por semana e dedica a maior parte do tempo a questões do interesse de seus integrantes, temos uma Corte Suprema dividida em alas garantista e punitivista, que ignora as próprias regras em decisões monocráticas estapafúrdias e promove barracos que enrubesceriam cafetinas de de lupanares de quinta categoria. Um exemplo lapidar foi o entrevero ocorrido durante uma sessão plenária em março de 2018, quando o todo-poderoso Gilmar Mendes aproveitou seu voto para criticar a construção da pauta no plenário e citou "manobras" dos ministros para votarem determinados processos: "ah, agora vou dar uma de esperto e conseguir a decisão do aborto, de preferência na turma com dois, três ministros".

Luís Roberto Barroso, alvo velado da crítica do colega, respostou de bate-pronto: "Me deixa de fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. (...) É um absurdo V. Exa. aqui fazer um comício, cheio de ofensas, grosserias. V. Exa. não consegue articular um argumento. Já ofendeu a presidente, já ofendeu o ministro Fux, agora chegou a mim. A vida para V. Exa. é ofender as pessoas. Não tem nenhuma ideia. Nenhuma. Só ofende as pessoas. Qual é sua ideia? Qual é sua proposta? Nenhuma! É bílis, ódio, mau sentimento, mal secreto, uma coisa horrível. V. Exa. nos envergonha, V. Exa. é uma desonra para o tribunal. Uma desonra para todos nós. Um temperamento agressivo, grosseiro, rude. É péssimo isso. V. Exa. sozinho desmoraliza o Tribunal. É muito penoso para todos nós termos que conviver com V. Exa. aqui. Não tem ideia, não tem patriotismo, está sempre atrás de algum interesse que não o da Justiça. Uma vergonha, um constrangimento."

Muita água rolou desde então. Cármen Lúcia foi sucedida na presidência da Corte pelo ministro cuja lista de atributos pode ser conferida nesta postagem, e que, dois anos depois, foi sucedido por Luiz Fux. Mas quem manda de fato no supremo terreiro é o fabuloso semideus togado Gilmar Ferreira Mendes, que teve os divinos ombros recobertos pela suprema toga por FHC, o que comprova para além de qualquer dúvida razoável que o grão duque tucano deixou, sim, uma herança maldita, mas que nada tem a ver com a aleivosia cantada em prosa e verso por Lula e seus acólitos descerebrados.

Apelidado de Maritaca de Diamantino pelo impagável Augusto Nunes, brilhantemente definido como “fotografia ambulante do subdesenvolvimento brasileiro, mais um na multidão de altas autoridades que constroem todos os dias o fracasso do país” por J.R. Guzzo e acusado de representar sério risco à proteção dos direitos no Brasil, ao combate à corrupção e à própria normalidade constitucional pelo professor Dalmo Dallari, o ministro-deus ocupa um cargo que não está previsto em nenhum dos 250 artigos da Constituição Federal ou em qualquer de suas mais de 100 emendas, mas vale tanto como se estivesse, ou possivelmente mais: o cargo de presidente do Poder Judiciário nacional. Não se trata da cadeira de presidente do Supremo, que é preenchida por um sistema de rodízio e vai sendo ocupada por qualquer um dos onze ministros — mas qualquer um mesmo — à medida que chega sua vez.

Observação: A maneira como se dá a escolha dos togados está prevista na Constituição, que é nossa lei maior. Mas o próprio Ulisses Guimarães reconheceu que a Carta promulgada em 1988, para além de tudo que deveria ser regulamentado via lei ordinária, continha falhas e lacunas a sanar e preencher. A questão da escolha dos togados deveria ter sido mudada há décadas. Quando mais não seja porque é vexatório um candidato à suprema toga sair beijando mãos pelos gabinetes do Senado (não custa lembrar que o Congresso está eivado de corruptos, encrencados com a Justiça, gente que o pretenso futuro ministro supremo poderá vir a a jugar). Integrar a Suprema Corte é o ápice da magistratura e o sonho de consumo de juízes, advogados e assemelhados, mas por alguma razão os membros da corte, referidos como ministros do Supremo Tribunal Federal, são escolhidos pelo presidente da República entre os cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Ou seja, você não precisa ter registro na OAB — e nem mesmo ter cursado Direito — para se candidatar a uma boquinha bem remunerada e vitalícia (a aposentadoria é compulsória aos 75 anos de idade, mas inexiste prejuízo salarial). Basta ter Q.I. (de “Quem Indica”), ou seja, conhecer as pessoas certas e puxar os sacos certos.

Voltando ao cargo de presidente do PJ foi criado pouco a pouco, ao longo dos últimos anos, e serve para dar ao seu ocupante a tarefa de realmente mandar no STF e, por tabela, no resto do sistema de Justiça do país. O atual presidente do Judiciário é Gilmar Ferreira Mendes, que ocupa o cargo porque sabe entender e atender melhor que ninguém os interesses materiais da casta que manda — de verdade — na vida pública do Brasil. Tudo que tem alguma relevância para o Brasil, hoje em dia, depende dele — pois os dois outros poderes, progressivamente, foram entregando a sua autoridade para o STF, aceitaram uma posição explícita de subordinação e agora suas decisões não valem nada, ou o equivalente a nada, enquanto não forem aprovadas pelo Supremo. Como é o ministro Gilmar quem de fato decide as coisas importantes no Tribunal, é nele que vale a pena prestar atenção. O resto é o resto.

Já não basta ao presidente da República negociar com os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados para governar o país; mais do que com eles, é preciso negociar com Gilmar. Poucas vezes essa nova realidade ficou tão evidente como no caso da indicação de Kássio Nunes, que só foi formalizada depois que Bolsonaro foi à casa Gilmar e obter sua benção (e o aval de Toffoli e Alcolumbre) para o nome escolhido; é algo sem precedentes na história brasileira.

O fato é que o nome que o capitão-cloroquina foi encontrar no Piauí e no Centrão para a vaga — uma resposta divina às orações mais devotas dos inimigos da Lava-Jato e do seu combate contra a corrupção — só existiu com a bênção de Gilmar. Nem a opinião dos dez outros ministros — que, de qualquer forma, não têm autoridade legal nessa escolha —, nem a do Senado — a quem cabe, oficialmente, aceitar ou recusar a indicação do presidente da República — fez a menor diferença. Quem dita as regras e dá as cartas é Gilmar.

Como dito no capítulo anterior, o latte do desembargador piauiense tinha algumas inconsistências, como se soube menos de uma semana após seu nome vir a público. O magistrado teria copiado trechos inteiros do texto escrito por um amigo e advogado do Piauí naquilo que apresentou como a sua “tese” de doutorado na “Universidade Autônoma de Lisboa” — que, aliás, não tem nada a ver com a verdadeira Universidade de Lisboa, mas é um empreendimento particular que cobra “propinas” (é assim que eles chamam as anuidades) de uns € 4 mil por ano, ou coisa do gênero, de quem queira fazer algum curso por lá. Nada que o ministro Gilmar não pudesse resolver, é claro, como também é claro que o Senado engole qualquer coisa — aceitaria um chimpanzé para o STF, se recebesse a ordem de aceitar.

Os ministros do STF não foram colocados lá pelo Parlamento da Nova Zelândia. O ministro Gilmar não foi nomeado para o cargo de presidente do Poder Judiciário; também não foi imposto por ninguém, nem chegou lá por meio de alguma ilegalidade. Está no posto porque, como dito linhas atrás, sabe entender e atender melhor que ninguém os interesses materiais da casta que manda — de verdade — na vida pública do Brasil. Ela é formada pelos políticos, sobretudo os que têm problemas com o Código Penal, a OAB e seus escritórios milionários de advocacia criminalista, os devedores do Erário, as empreiteiras de obras, o consórcio esquerda-direita-centrão, o alto funcionalismo público, os intelectuais orgânicos, a ladroagem em geral, a elite em seu modo mais extremo, a turma do ex-presidente Fernando Henrique, que o colocou no Supremo — enfim, vai pondo.

Gilmar é, no fundo, o homem que realmente pode resolver os problemas dessa gente toda — e agora, como se comprovou com a indicação do novo ministro, também os problemas do presidente Bolsonaro. É o herói de todos eles porque se tornou, mais do que qualquer outra coisa, o garantidor número 1 da impunidade neste país — tem mandado soltar, como se fosse uma questão de princípio, qualquer acusado de corrupção que lhe passe pela frente, por conta daquilo que considera “ilegalidades processuais”. Fechou o jogo pelos quatro cantos.

STF brasileiro, com esses onze ministros que estão lá hoje, não é fruto de um azar da natureza, como os terremotos e enchentes — é fruto das escolhas políticas que vêm sendo feitas no Brasil nos últimos trinta anos, das eleições dos presidentes da República às eleições de senadores e deputados federais. Seus ministros não foram colocados lá pelo Parlamento da Nova Zelândia. São o resultado direto e inevitável da vida política brasileira; é dali que saem, como Eva saiu da costela de Adão.

LulaDilmaBolsonaroTemerAécioRodrigo MaiaRenan CalheirosDavi Alcolumbre? Dá tudo na mesma. O STF que está aí é o STF que eles quiseram, e que a maioria dos políticos eleitos no Brasil quis. Não adianta achar que os responsáveis são outros — da mesma maneira que não adianta imaginar que o Supremo teria um comportamento decente se não fosse comandado por Gilmar. Os outros dez são mais ou menos iguais a ele — a diferença é que não sabem agir com a mesma eficácia.

Cada dia é um dia, é claro, e não existe nada definitivamente seguro debaixo da luz do sol. Mas a experiência tem mostrado que o homem decisivo é o ministro Gilmar. O novo presidente do STFLuiz Fux, recém-chegado ao cargo, dá a impressão de estar tentando algo diferente — acaba de transferir para o plenário, por exemplo, a decisão sobre casos de corrupção hoje entregues à notória 2ª Turma, onde Gilmar reina diretamente. Levou o troco na hora. “Não faz sentido chegar do almoço e receber a notícia que tem [sic] uma reforma regimental que será votada”, disse Gilmar. “Não é assim que se procede.” Fazer isso, no seu entender, seria como baixar um “Ato Institucional”.

Foi uma bronca e tanto; vamos ver, a partir de agora, até onde o ministro Fux vai chegar com sua independência. Um que tentou antes foi o ministro Luís Roberto Barroso (detalhes no capítulo anterior). De lá para cá, parece que baixou o facho; não se ouviu mais nada de relevante em que tivesse se colocado contra o presidente do Judiciário.

O ministro Gilmar Mendes não é nenhuma anomalia de circo, como a mulher barbada ou o bezerro de duas cabeças. É o retrato exato deste STF que está aí — e da Justiça brasileira tal como ela funciona hoje.

Com J.R. Guzzo