quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

A BALEIA ENCALHOU



Baleia Rossi foi derrotado, mas quem perdeu mesmo foi Rodrigo Maia. Arthur Lira foi eleito, mas quem venceu mesmo foi Jair Bolsonaro.

Maia assumiu a presidência da Câmara em meados de 2016 — depois que o STF cassou o mandato do todo-poderoso Eduardo Cunha — reelegeu-se no ano seguinte com respeitáveis 293 votos e novamente em 2019, com ainda mais expressivos 334 votos. Deixou o cargo na última segunda-feira, às lágrimas, depois que seus pares elegeram o candidato patrocinado pelo Palácio do Planalto (político alagoano do mais fino trato) por 302 a 145 votos. A título de curiosidade, Fábio Ramalho obteve 21 votos, Luiza Erundina, inacreditáveis 16; Marcel van Hattem, 13; André Janones, 3; Kim Kataguiri, 2; e General Peternelli, 1).

Pode parecer estranho Bolsonaro emplacar não um, mas dois apadrinhados (no Senado, Rodrigo Pacheco derrotou Simone Tebet por 57 votos a 21) depois do fiasco nas eleições municipais do ano passado, quando a maioria dos candidatos que ele apoiou não se elegeu. Mas para quase tudo existe uma explicação. Segundo O Globo, a vitória de Arthur Lira se deveu a uma série de ações assertivas do governo federal, tais como promessa de liberação de verbas a deputados e senadores, exoneração de aliados de parlamentares que votariam em candidatos adversários, acenos a uma reforma ministerial, incluindo a possibilidade de recriação de pastas para abrigar aliados, e por aí segue a sem-vergonhice.

Uma das iniciativas para alavancar a candidatura do deputado alagoano e dono do PP foi sinalizar aos parlamentares que eles poderiam escolher os municípios que receberiam um total de R$ 636 milhões em repasses dos ministérios do Turismo, Desenvolvimento Regional e Agricultura. Interlocutores relataram que as negociações ocorreram individualmente, sem um valor fixo para cada um que se comprometesse a votar no candidato apoiado pelo Planalto. Para os opositores, como não havia (e ainda não há) Orçamento aprovado para 2021, o governo vendeu "terrenos na Lua", ou seja, só teria como pagar depois da eleição, mas o importante é prometer, né? O capitão sabe bem disso, já que prometeu propor o fim da reeleição, ser implacável com a corrupção e os corruptos e jogar uma pá de cal sobre o túmulo da velha política do toma-lá-dá-cá. E deu no que deu.

Ainda no ano passado, o governo liberou verba "extra", através de indicações informais, para diversos apoiadores de Lira e Pacheco. No final do ano, aprovou um projeto de lei no Congresso liberando R$ 1,9 bilhão para investimentos. Segundo parlamentares, Lira negociou o apoio de deputados com base nesses pagamentos, e Maia chegou a dizer que o governo estava prometendo R$ 20 bilhões em emendas parlamentares em troca de votos em Lira.

Também como forma de pressão, deputados do grupo de Baleia Rossi viram seus apaniguados perderem cargos que ocupavam no governo federal. Na semana passada, Bolsonaro acenou (e depois negou) com a possibilidade de recriar os ministérios do Esporte, Pesca e Cultura, que hoje têm status de secretarias.

Existe uma pressão do Centrão para que mais políticos do bloco ocupem ministérios, com a perda de espaço dos militares. Especula-se que o titular da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, passe a ocupar outro posto, a exemplo de Onyx Lorenzoni, que deverá assumir a Secretaria-Geral para que um indicado do Republicanos assuma o ministério da Cidadania.

Maia foi abandonado até mesmo pelo DEM — partido que ele ajudou a fundar — depois que o presidente nacional da sigla, ACM Neto, liberou os parlamentares demistas a votar em quem bem entendessem. O anúncio irritou o ainda presidente da Câmara, que agora ameaça deixar a legenda. (Tchau, querido!). O neto de ACM diz que fez o que fez para evitar uma cisão no DEM, já que a maioria da bancada havia migrado para a campanha do candidato governista. 

A imprensa chegou a divulgar que Maia tencionava retaliar, dando seguimento a um dos mais de 60 pedidos de impeachment do presidente que engavetou ao longo dos últimos dois anos. Maia negou. Primeiro, porque fazer no apagar das luzes de sua gestão o que deveria ter feito meses atrás “pegaria mal”. Segundo, porque, considerando o expressivo número de deputados que votaram em Lira e o interesse do Centrão (pelo menos por enquanto) na permanência do chefe do Executivo no posto, o impeachment seria barrado já na CCJ da Câmara.

Contra fatos não há argumentos, mas o “vil metal” não é argumento, e a exceção que confirma a regra. Maia apostou mal, perdeu, e agora não tem condições sequer de permanecer no DEM. Já Davi Alcolumbre, que estreitou laços com Bolsonaro, não só fez seu sucessor como está cotado para a ocupar um ministério. Alias, depois que o senador Jorge Kajuru fez uma série de críticas ao ainda presidente do Congresso, chamando-o, inclusive, de "office boy de luxo" de Bolsonaro, Alcolumbre, em flagrante desrespeito ao regimento interno da Casa, abriu espaço para a colega Kátia Abreu louvá-lo num longo e tocante discurso.  

Tudo somado e subtraído, Bolsonaro é o pior líder mundial no enfrentamento da Covid. Sua popularidade está em queda em qualquer pesquisa de opinião que se olhe, em praticamente todos os estratos e regiões. Graças a seu notório negacionismo e à incompetência chapada do general-vassalo que ele nomeou ministro da Saúde não há vacina suficiente para imunizar a população tupiniquim. A economia, que já não ia bem das pernas antes da pandemia, voltou a patinar depois de uma tão breve quanto insustentável recuperação produzida pelo auxílio emergencial. E qual a resposta dos senhores parlamentares a esse estado de coisas? Dar ao morubixaba da banânia o comando das duas Casas do Congresso. A que custo? As cifras variam, mas sempre na casa dos bilhões de reais, vindos do Orçamento federal já estourado e de cortes de gastos que deveriam ser prioritários.

Salta aos olhos que nossos políticos não têm compromisso com os interesses da nação, e que viram na fragilidade de Bolsonaro a chance de lhe arrancar até as cuecas na forma de fisiologismo explícito para afastar o fantasma do impeachment — que, juntamente com a blindagem dos filhos e a reeleição, é a grande preocupação de sua alteza irreal. Pouco importa a essa caterva que seus partidos implodam suas próprias estruturas e comprometam a própria estratégia para 2022. Como em 2018, eles se mostram incapazes de projetar, no longo prazo, as consequências de suas ações. DEM, PSDB, PSD e MDB adiam ou comprometem em definitivo qualquer possibilidade de construção de uma frente alternativa ao bolsonarismo para 2022. Presa ao imediatismo de cargos e emendas, essa gentalha não leva em conta nem o básico: se a economia continuar derretendo e a pandemia, avançando, a popularidade de Bolsonaro vai cair a sub-zero.

Todas as muitas e caras promessas feitas para angariar votos para Arthur Lira na Câmara começarão a ser cobradas de pronto, com mais virulência quanto maior for o desgaste do capitão nas pesquisas. O Orçamento em frangalhos não comporta todos os ministérios e emendas prometidos, e a gritaria não vai tardar. Bolsonaro se encanta com a suposição de que passou a ter uma base congressual. Ledo engano. O Centrão é que tem um presidente — mais um, na verdade.

Na canetada inaugural de sua gestão, Lira anulou o registro do bloco de apoio do adversário, que fora referendado por Maia. Fez isso para favorecer o seu próprio bloco partidário no rateio dos seis cargos da Mesa diretora da Câmara. Ao esmurrar o inimigo que já se encontrava na lona, Lira mostrou que, entre outros predicados, é vingativo. Faz lembrar Eduardo Cunha, o ex-presidente da Câmara que a Lava-Jato converteu em presidiário (e do qual Lira foi um fiel aliado).

"Não há um trono no plenário", disse o novo presidente da Câmara no discurso da vitória. "Não há, portanto, um soberano." De fato, o deputado alagoano não é rei. É réu. Mas alguma coisa está fora do lugar quando uma autoridade precisa trombetear sua pretensa humildade.

Nelson Rodrigues conta o caso de uma senhora brasileira que visitou o papa. Na hora da despedida, Sua Santidade inclinou-se e balbuciou um apelo: "Reze por mim." Um papa, disse o escritor, pode ter essa modéstia. Arthur Lira, o papa do centrão, talvez cochichasse algo diferente para Bolsonaro: “Reze por si.”

Não será simples fazer andar a pauta regressiva que o morubixaba espera ver transformada em prioridade legislativa: a oposição, depois de um primeiro ano dominado pela discussão da reforma da Previdência e um segundo em que a pandemia ditou o apoio a projetos do governo, agora será ruidosa e atuante. A discussão sobre a volta do auxílio emergencial vai estressar Paulo Guedes e sua equipe. O governo reclamou muito de Maia, mas vai sentir falta do compromisso que ele sempre teve com o ajuste fiscal diante do comando do rei do Centrão, para quem o teto de gastos é apenas um obstáculo ao cumprimento de suas promessas de campanha.

E o impeachment? Os 62 pedidos que Maia deixou de herança servirão como um alerta de que, se não ajoelhar no milho e entregar tudo o que prometeu, Bolsonaro pode ser colocado na roda pelo hoje aliado. Em sendo o caso, não há que esperar fidelidade: nem o presidente hesitará em culpar o Centrão pelo fracasso de seu governo, nem o Centrão irá titubear se tiver de rifar o presidente. É como a fábula do sapo e o escorpião, com a diferença de que os dois companheiros de travessia têm ferrão.

Com Vera Magalhães e Josias de Souza.