Quis uma cruza atroz do destino que a pandemia do século XXI apanhasse o Brasil nas mãos de um homem mau, presidente sem noção do que seja governar, desprovido de conhecimentos básicos sobre o funcionamento das coisas públicas, em estado de total privação de senso da urgência de prioridades, referido no voraz desleixo em relação ao bem estar coletivo.
Um síndico de edifício zela pelo conjunto dos condôminos
quando determina o uso de máscara aos funcionários, espalha recipientes com
álcool em gel, restringe a circulação e fixa nas dependências do prédio
comunicados aos moradores sobre a necessidade de cumprimento das regras, mas o
atual presidente do Brasil nem como zelador seria bem aceito, não foi
talhado para a vida em comunidade.
Jair Bolsonaro
condena qualquer tipo de proteção aos residentes da nação e ainda vilipendia
quem trabalha em prol dos cuidados. Sua ausência de apreço pela vida alheia
poderia ter como explicação a maldade, o desvio de caráter ou mesmo algum tipo
de dano psicológico grave, não carregasse junto doses oceânicas de cálculo
político-eleitoral.
Não vejo, como apregoam alguns no afã de imprimir maior
contundência ao exercício da oposição, que a ideia do presidente seja matar
pessoas ou torcer para que morram. Isso dá dramaticidade à cena, mas cria um
espaço de fantasia por onde transitam com muita habilidade Bolsonaro e seus
miquinhos amestrados, dando-lhes a oportunidade de exercer a reação com
virulência igualmente irrealista. Nesse campo vicejam, por exemplo, as falácias
sobre medicamentos inúteis, os malefícios do uso de máscara, o atraso na compra
de vacinas e o alarde em torno de aludidos prejuízos, sem a correspondente
serventia, do isolamento social.
O que há como fato incontestável é a insensibilidade
presidencial ante a dizimação de vidas. Ao longo do último ano Bolsonaro fez uma ou outra referência
às vítimas e sempre de maneira protocolar. Enquanto rodopia com satisfação por
aglomerações país afora e até Palácio do Planalto adentro, no decorrer deste
ano de pandemia o presidente não fez — e continua não fazendo — um gesto sequer
de compaixão pelas vítimas do vírus com o qual desenvolveu uma relação afável.
Autoriza, assim, a suposição bastante plausível de que não
se importa com elas porque estão mortas, e mortos não votam. Exagero na
conclusão? Pode até ser, dependendo do ponto de vista, mas é o próprio
presidente quem dá margem a esse raciocínio ao direcionar toda a sua atenção à
conquista de novos públicos eleitorais e zero dedicação espiritual aos que se
foram, além de mostrar-se indiferente aos que estão potencialmente condenados a
ir.
E quem são esses novos públicos eleitorais? São os
integrantes de uma massa que mistura ignorantes, insensatos e desesperados
diante de perdas materiais agravadas pela incapacidade (agora e sempre) dos
poderes públicos de lhes assegurar condições mínimas de suporte.
Perdido o mundo do dinheiro que não cairá em 2022 na mesma
conversa de 2018, quebrada a fortaleza do universo político que em grande parte
se afastou dele, derrubadas as bandeiras na nova política e do combate à
corrupção, é para as camadas de desvalidos, de prisioneiros da crença de que
tudo vai bem porque o presidente diz que está tudo bem, que Jair Bolsonaro dirige sua artilharia
eleitoral.
É para eles que fala quando fustiga governadores e prefeitos
divulgando dados distorcidos sobre repasses de recursos federais e ameaça não
transferir dinheiro do auxílio de emergência para localidades onde autoridades
imponham restrições mais severas à circulação de pessoas.
É a eles que busca conquistar e fidelizar quando se jacta
com frases do tipo “Não errei nenhuma
até agora”, como disse dia desses em meio a uma aglomeração de fiéis. É
nesse alvo que o presidente mira quando enquadra governadores na categoria dos
“maus” repressores da liberdade (seja de festejar ou de ganhar o pão), enquanto
sobe no pódio do “bom” que reduz o preço do diesel e do gás de cozinha. É com
os olhos voltados exclusivamente para si que mobiliza a máquina de propaganda
do governo na produção de cenas de ajuntamentos cuidadosamente escolhidos para
lhe referendar popularidade.
Assim, o presidente da nossa desafortunada, mas resistente,
República busca (e consegue) intimidar ofensivas tão rigorosas quanto severos
são os seus desmandos.
Com Dora Kramer