terça-feira, 30 de março de 2021

MUITO FAZ QUEM NÃO ATRAPALHA (E NOSSO ADEUS A ERNESTO ARAÚJO)


Antes do texto que eu selecionei para hoje, cumpre comentar a demissão chanceler de fancaria Ernesto Araújo — integrante da ala ideológica do desgoverno Bolsonaro, nomeado pelo então presidente eleito para ocupar o cargo de ministro das Relações Exteriores em novembro de 2018.

No Itamaraty, Araújo sempre seguiu os ditames de política externa da cartilha de Donald Trump (vade retro, Satanás), o que resultou em atritos com importantes parceiros comerciais, como a China, para citar o mais notório. De algum tempo a esta parte, a pressão dos senadores tornou insustentável sua permanência no cargo

A atuação do discípulo de 03 em nada contribuiu para a imagem do Brasil aos olhos do mundo (imagem essa que piorou sobremaneira depois que o capitão sem luz assumiu a presidência e atingiu os píncaros da abjeção por sua péssima atuação no combate à pandemia) mas, mesmo assim, o capitão-negação se recusou a penabundá-lo, a exemplo de como agiu em relação ao interventor insalubre que transformou o ministério da Saúde num pesadelo kafkiano.     

O ora ex-chanceler iniciou sua carreira no Itamaraty em 1991 e chegou ao topo da hierarquia diplomática em junho de 2018, quando foi promovido a embaixador. Ontem, o troglodita informou assessores próximos da decisão de deixar o ministério e entregou seu pedido de demissão ao presidente após pressão de parlamentares, inclusive dos presidentes da Câmara e do Senado. No Congresso, a avaliação é de que sua postura radical isolou o Brasil no cenário internacional e prejudicou a obtenção de vacinas contra a Covid.

A última semana mostrou que a paciência do meio político havia chegado ao limite. Na quarta-feira (24), Araújo foi cobrado pelo presidente da Câmara, na presença de Bolsonaro, a uma atuação mais efetiva na busca pelas vacinas. No mesmo dia, em uma sessão do Senado, ouviu de diversos parlamentares pedidos insistentes para que deixasse o cargo. Na quinta (25), o próprio líder do governo do governo na Câmara, Ricardo Barros, disse que o ministro “não tem ambiente” para negociar ajuda internacional ao Brasil para acelerar a chegada de vacinas. A gota que fez o copo transbordar foi um atrito com a senadora Kátia Abreu

Araújo escreveu em uma rede social que, em um almoço no início de março, Kátia, presidente da comissão de relações exteriores, teria lhe dito que ele seria o "rei do Senado se fizesse um gesto em relação ao 5G". A declaração foi vista como desespero por senadores, uma tentativa de tirar o foco da pressão por sua demissão. Em resposta, a senadora disse que é "uma violência resumir três horas de um encontro institucional a um tuíte que falta com a verdade". Vários senadores prestaram solidariedade à colega. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, criticou a fala do chanceler, que chamou de “cortina de fumaça”. 

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Lideranças do Centrão começam finalmente a repensar o apoio que dão ao presidente. “Ninguém vai querer se expor em um governo que pode acabar mal por causa da pandemia”, disse o deputado Fausto Pinato, do Progressistas. E as cobranças estão ficando cada vez mais explícitas. O bloco pressionou Bolsonaro a substituir o ministro da Saúde (para sinalizar uma mudança radical no modo como o governo administra a crise) e agora exige a cabeça do chanceler de fancaria Ernesto Araújo.

Especula-se que Bolsonaro buscava alternativas para presentear o general Pesadelo com um Ministério — a exemplo do que Dilma tentou fazer para blindar Lula em 2016, o que escandalizou o País. Mas é disso que se ocupa diuturnamente o morubixaba de turno: proteger a si mesmo e a seus chegados. Nem a pilha de cadáveres produzida pela Covid, que cresce à razão de 3 mil copos por dia, nem a falta vagas nas UTIs dos hospitais, a lentidão da vacinação e o empobrecimento acelerado da população são capazes de comovê-lo (embora devessem ser capazes de apeá-lo do cargo e defenestrá-lo do gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto). 

Enquanto Bolsonaro cultua a morte, a Saúde entra em colapso e enterros congestionam os cemitérios, Bolsonaro insiste em combater as ações preventivas de governadores e prefeitos — como se elas fossem violações do direito de ir e vir ou, ainda, imposições típicas de estado de sítio. Trata-se de uma confusão evidente e perigosa, a exemplo da insistência na oposição entre saúde e economia. Aliás, nunca antes na história deste país um presidente citou com tanta frequência as Forças Armadas, nem as mencionou como se estivessem às suas ordens para impor sua orientação política. 

É inaceitável que pacientes morram na fila de espera por atendimento, sem ao menos terem uma chance na árdua luta por suas vidas. Até quando a perversa combinação de incompetência e veleidades políticas vai continuar matando brasileiros? Que número de mortos por dia será o limite “tolerável” para que medidas para dar fim a este horror sejam tomadas?

Em geral, essa pergunta traz implícita a expectativa de que, em algum momento, a população vai reagir de forma explícita e contundente contra a atuação caótica de Bolsonaro. Em relação a esses questionamentos, é preciso lembrar que a população não precisa sair às ruas para se manifestar contra o presidente, seja porque o país vive um momento dramático em relação à pandemia, seja porque — e esta é a principal razão — já existe um caminho para que a população faça valer a sua vontade: o Congresso.

É equivocada a ideia de que o país não dispõe dos meios para enfrentar o descalabro que é o comportamento de Bolsonaro na pandemia. A Constituição de 1988 proporcionou os instrumentos necessários, que não se restringem, como às vezes equivocadamente se pensa, aos relacionados com o Poder Judiciário ou o Ministério Público. O legislador constituinte atribuiu ao Poder Legislativo, expressão máxima da representação popular no regime democrático, o dever de fiscalizar o Poder Executivo.

Para cumprir a contento essa incumbência, a Constituição previu, entre outros instrumentos, a possibilidade de o Legislativo criar as comissões parlamentares de inquérito, as CPIs, que integram o aparato de defesa próprio de um regime democrático, com a instauração de um processo investigativo levado a cabo pelos próprios representantes da população. Tais comissões não são um teatro, mas um instrumento para investigar e, assim, atribuir responsabilidades políticas e jurídicas a quem deu causa aos fatos apurados. E não faltam motivos para apurar a atuação do Palácio do Planalto. Basta pensar que, em pouco mais de um ano de pandemia, o país teve nada menos que quatro ministros da Saúde.

Num Estado Democrático de Direito, há situações que transcendem a atuação do Judiciário ou do Ministério Público — que não são representantes da vontade popular e, em razão de suas competências específicas, devem se pautar por um estrito rigor legal. Mas é imperativo que o próprio Legislativo volte sua atenção para tais situações, de forma a dar uma resposta satisfatória à população.

Para além dos mais de 70 pedidos de abertura de processo de impeachment que dormitam nos escaninhos da presidência da Câmara, ora comandada pelo deputado-réu Artur Lira, há na mesa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, um pedido de abertura de CPI relativo à condução da pandemia pelo governo federal que cumpre todos os requisitos constitucionais. Deixá-lo na gaveta, como se fosse algo politicamente turbulento demais para o momento atual, não é apenas ignorar a Constituição ou ser cúmplice com o descaso de Bolsonaro com a saúde e a vida da população. Eventual omissão na abertura da CPI da pandemia manifestaria alheamento da realidade humana, sanitária, social, econômica e política do país. Seria uma trapaça com a população, vinda justamente do Legislativo, a quem compete representar de forma plural e efetiva os anseios da população.

Na atual conjuntura, não é preciso coragem para abrir a CPI, tampouco é necessária uma sofisticada compreensão dos deveres constitucionais do Legislativo. Basta olhar para o povo brasileiro. A inédita crise social, econômica e humanitária causada pela pandemia, associada à forma irresponsável e muitas vezes criminosa como o governo federal a administrou até aqui, parece ter dado ensejo ao que parecia impossível: algum entendimento entre forças políticas de centro e de esquerda que há tempos se tratam aos empurrões.

É prudente não nutrir grande entusiasmo, dado o histórico de desavenças e o caráter de alguns dos personagens envolvidos, mas nos últimos dias petistas e tucanos vêm se tratando de maneira razoavelmente civilizada e demonstrando genuína disposição de colaborarem uns com os outros para enfrentar a pandemia — e, por tabela, a insanidade disseminada pelo bolsonarismo. “É hora de dar os braços ao João Doria, ao Eduardo Leite, independente (da eleição) de 2022. É a hora de os líderes demonstrarem grandeza”, disse ao Estado o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, referindo-se aos governadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul, ambos tucanos.

Por terem adotado medidas de restrição para conter a pandemia e por serem dois dos principais críticos de Bolsonaro, Doria e Leite vêm sendo atacados brutalmente pelo presidente e por seus camisas pardas nas redes sociais. O governador Dias falava como emissário do ex-presidiário Lula, que pretende se incluir (oportunisticamente) no esforço de governadores para obter vacinas — com seu alegado prestígio internacional, o petralha acha que pode ser útil. É claro que, em se tratando de Lula, não há ponto sem nó. Mas, nas atuais e dramáticas circunstâncias, já será de grande ajuda se o ex-presidiário pelo menos não atrapalhar.

É preciso aproveitar esse raro momento de convergência política na oposição para articular um projeto que vá além da promessa de interrupção da esbórnia bolsonarista. Será um alívio não ter mais Bolsonaro na cadeira presidencial, é claro, mas quem vier a ocupá-la deve ser portador de um grande entendimento nacional para superar as condições que, em primeiro lugar, permitiram que o capitão chegasse lá. A restauração da inteligência no governo e na política é fundamental, mas é apenas o primeiro passo da longa caminhada para reconstruir o país.