Em entrevista à Estação Nêumanne, Merval Pereira se disse surpreso e decepcionado com o apoio dos militares ao desgoverno federal. Na visão do jornalista, os fardados deveriam controlar o lunático que se tornou seu comandante-em-chefe, mas foram seduzidos por cargos, salários e poder.
A mim me surpreende a surpresa do jornalista global, já que ele próprio lembrou, em artigo recente, que a biografia de Bolsonaro feita pelo CEPEDOC da Fundação Getúlio Vargas é uma sucessão de fatos que pavimentaram o caminho trilhado pelo capitão insubmisso rumo à presidência da República com a leniência que lhe foi dispensada tanto pelo Exército quanto pelo Parlamento.
Em 1986, quando era capitão no 8º Grupo de Artilharia de Campanha, o hoje despresidente foi preso por ter publicado na revista Veja um artigo intitulado “O salário está baixo”. No ano seguinte, a própria Veja denunciou a “Operação beco sem saída” — um protesto urdido em pareceria com o também capitão Fábio Passos da Silva, com o objetivo de explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras e em diversos quartéis, caso o reajuste do soldo ficasse abaixo de 60%.
Segundo declaração do general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército, os capitães negaram
peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho,
qualquer veracidade daquela informação. Mais adiante, depoimentos de testemunhas
e provas documentais — como um croqui desenhado por Bolsonaro — levaram o general a apresentar
um pedido de expulsão dos dois, mas Superior
Tribunal Militar decidiu, por maioria, acatar a tese da defesa, segundo a
qual os réus “eram vítimas de um processo viciado”.
Durante a campanha presidencial que culminou com a vitória de
Bolsonaro, circulou na Web a
informação — falsa — de que o então candidato teria deixado o quartel por
“insanidade mental”. Em resposta, a assessoria de imprensa do Exército divulgou uma nota dizendo que o capitão fora transferido para a reserva
automaticamente ao ser eleito vereador no Rio de Janeiro, conforme determina
o Estatuto dos Militares.
Balela. Foi a aversão dos fardados à imprensa a grande responsável pela absolvição de Bolsonaro (fala-se,
inclusive, que o STM teria condicionado a decisão favorável ao capitão à sua reforma).
Em 1988, Bolsonaro foi eleito vereador com
o apoio dos militares — ele sempre balizou sua atuação política em assuntos
caros aos fardados, como melhorias nas condições de trabalho de soldados e cabos (o baixo clero da caserna),
e levou essa bandeira da Câmara de Municipal do Rio de Janeiro para a Câmara Federal, que atravessou com uma
apagada atuação parlamentar,
focada no atendimento de demandas corporativas das Forças Armadas.
Em entrevista concedida à revista Época, o general Ernesto
Geisel qualificou de “caso completamente fora do normal,
inclusive mau militar”. Segundo o coronel Carlos Alfredo Pellegrino, o capitão
Bolsonaro tentava liderar oficiais subalternos, mas não conseguia pela “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio
na apresentação de seus argumentos”. No julgamento do STM, o insurreto foi acusado de ter “grave desvio de personalidade”. Em
1991, no primeiro de seus sete mandatos de deputado federal, Bolsonaro defendeu o retorno do regime
de exceção e o fechamento temporário do Congresso. Segundo ele, muitas leis
atrapalham o exercício do poder e “num
regime de exceção o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e
risca a lei que está atrapalhando”. O pronunciamento levou o corregedor
do Congresso, deputado Vital do
Rego, a solicitar ao então PGR, Aristides
Junqueira, o início de uma ação penal contra o parlamentar por crime contra
a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Câmara.
Em1994, Bolsonaro
afirmou disse que preferia “sobreviver
no regime militar a morrer nesta democracia”; em 1999, a Mesa Diretora da
Câmara propôs ao plenário sua suspensão por um mês, por ter defendido o
fechamento do Congresso e afirmado que “a
situação do país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente”,
incluindo o então presidente Fernando
Henrique, mas recebeu apenas uma advertência. Em dezembro, o deputado voltou
a defender o fuzilamento de FHC. O
líder do governo na Câmara, Artur
Virgílio, chegou a pedir sua cassação, mas a proposta nunca chegou ao
plenário da Casa. Ao votar em abril de 2016 a favor do impeachment de Dilma, o capitão fez uma homenagem ao
coronel torturador Carlos Alberto
Brilhante Ustra. Foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara por apologia
à tortura, mas nada aconteceu.
Desde o início da pandemia que o presidente relativiza (para
dizer o mínimo) a importância das medidas de segurança, como o isolamento e o
uso de máscaras. Já usou palavras como histeria
e fantasia para classificar a reação
da população e da imprensa ao vírus. “Chega
de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os
problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças,
comorbidades, mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?” disse sua
excelência, depois de afirmar (no início do ano, quando os números indicavam o recrudescimento
de internações e mortes) que o Brasil estava vivendo “um finalzinho de
pandemia”.
Observação: O ex-ministro
da Saúde Luiz Henrique Mandetta diz que o Brasil já vive o caos no
sistema de saúde, com mortes por desassistência — e está a um milímetro do
colapso, que é quando mesmo quem está dentro de hospitais não consegue ser
socorrido.
Bolsonaro defende
o uso da Cloroquina e tratamentos
precoces não avalizados pela comunidade científica. Incentiva aglomerações, obstrui
a compra de vacinas, dissemina informações falsas sobre a Covid, faz campanhas de desobediência a medidas de proteção
(confira a
lista de asneiras que ele já disse sobre a “gripezinha”) e ataca
governadores. Já comparou toque de recolher de gestores estaduais em pânico com
a lotação das UTIs a um estado de
sítio baixado por “tiranetes” e “tiranos”. Avisou que “o caos vem
aí”. Ameaçou chamar “o meu exército" se continuarem “esticando a
corda”. Declarou que o general Eduardo
Pesadelo fez “um trabalho extraordinário no Ministério da Saúde”. E
agora, vendo sua popularidade entrar em parafuso, defende conciliação e entendimento. Quer envolver as cúpulas dos três
Poderes na guerra contra a Covid.
Arrisca-se a fazer papel de bobo quem acreditar na
teatralidade de uma articulação que reúne num mesmo pacote Bolsonaro e os vocábulos conciliação e entendimento. São coisas
inconciliáveis. O teatro da concórdia está marcado para hoje, no Palácio da
Alvorada. Encabeçam a lista de convidados Luiz
Fux, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira. Os convites foram
formulados na semana passada, nas pegadas da queda de Bolsonaro no Datafolha.
Desde então, o presidente dedicou-se em tempo integral ao único setor do seu
governo que funciona com perfeição: a usina de crises.
Nesta segunda-feira, antevéspera da sessão de teatro no
Alvorada, Bolsonaro disse que o
Brasil “dá exemplo” na pandemia, que o governo faz um “trabalho excepcional”
na distribuição de vacinas e que não tem a mais remota intenção de se
reposicionar em cena. “Devo mudar o
meu discurso, me tornar mais maleável?”, ele perguntou. “Se me convencerem do contrário, eu faço.
Mas não me convenceram ainda. Devemos lutar contra o vírus, não contra o
presidente.”
Ou seja: o pacto ensaiado pelo Planalto é mais ou menos como
o diálogo travado entre um cego e um grupo de surdos, na solidão de uma gruta
chamada impasse. A hipotética tentativa de entendimento surtirá sobre a “gripezinha”
que está prestes a matar 300 mil brasileiros o mesmo efeito da cloroquina na
cura da Covid.
Ninguém se lembra, mas a primeira vez que Bolsonaro falou em "pacto"
foi no discurso de posse, pronunciado no Congresso em 1º de janeiro de 2019. Em
timbre genérico, ele propôs um "pacto nacional entre a sociedade e os
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de novos caminhos para o
Brasil" e reafirmou seu "compromisso de construir uma
sociedade sem discriminação ou divisão".
O apreço de Bolsonaro
pelo pacto durou a distância que separa o prédio do Congresso e a sede do
Executivo. Minutos depois, em novo discurso, dessa vez no Parlatório do
Planalto, sua excelência fez uma proclamação belicosa: "O Brasil começa a se libertar do
socialismo e do politicamente correto", ele afirmou, inaugurando uma mania
que caracteriza a sua Presidência: a mania de criar fantasmas e depois se
assustar com eles. O pacto de que Bolsonaro precisa já existe. E não depende
dos chefes de outros poderes para ser executado. Chama-se Constituição Federal.
O trecho que se aplica à pandemia está escrito no artigo 196. Diz o seguinte: "A
saúde é direito de todos e dever do Estado..."
Na guerra contra o vírus, Bolsonaro fez o pior o melhor que pôde. Seu negacionismo crônico
retarda o único encontro que interessa no momento: o da seringa com o braço dos brasileiros. Fora disso, qualquer
ideia de pacto ou conciliação não resiste a meia dúzia de posts nas redes
sociais ou de declarações de Bolsonaro
no cercadinho dos devotos. Todos já sabem o que ele precisa fazer: presidir a
crise sanitária. Mas o presidente avisa que não está convencido de que deva
alterar seus pontos de vista. É como se o intimasse o Brasil a decidir que país
deseja ser.
Se o teatro do Alvorada não resultar numa reação efetiva à
desconversa de Bolsonaro, bastará a
qualquer parlamentar ou autoridade permanecer de cócoras em Brasília para ser
considerada uma pessoa de grande altivez.
Com Josias de Souza