quinta-feira, 4 de março de 2021

O SENSO CRÍTICO MORREU

No início da pandemia, Bolsonaro tentou manter tudo aberto como se nada estivesse acontecendo. Graças a líderes lúcidos de todos os espectros políticos, isso não aconteceu — tivesse acontecido, hoje, muito provavelmente, não teríamos 250 mil mortos pela Covid, mas alguns milhões deles.

Segundo o jornalista, escritor e consultor Felipe Machado, diretor de comunicações da fundação sem fins lucrativos Worldfund, a aparente preocupação de nosso mandatário com a economia é mera falácia. Não fosse, em vez de receitar um remédio comprovadamente ineficaz, como se quisesse que as pessoas saíssem às ruas para morrer, ele teria sido o primeiro a lutar pela imunização, e não teria expelido dois médicos do Ministério da Saúde — com menos de 30 dias entre a exoneração do primeiro e o pedido de demissão do segundo — para nomear como preposto um "fantoche aparvalhado", um suposto expert em logística que é incapaz de achar a saída de seu gabinete, ainda que a sala tenha apenas uma porta.

Bolsonaro promove aglomerações e estimula as pessoas a saírem sem máscara apenas para produzir os vídeos patéticos que publica em suas redes sociais — mesmo que isso custe a vida de milhares e milhares de brasileiros. Por outro lado, há que reconhecer que o capitão sem luz jamais nos decepciona: quando imaginamos que chegou ao fundo do poço, ele surge do alto de sua parvoíce para nos brindar com alguma pérola ainda mais baixa do que da última vez.

Nos últimos tempos, sua incontinência verborrágica tem nos brindado com disparates que iluminam o funcionamento do complexo cérebro presidencial. Suas ideias remetem a outras importantes escolas do pensamento — como a Lógica Aristotélica, cujos argumentos que nos permitem chegar a conclusões coerentes, e o Método Socrático, onde perguntas feitas pelo mestre levam o pupilo a descobrir suas próprias verdades. 

Hoje, temos no Brasil mais uma inovadora forma de conhecimento: o Pensamento Bolsonárico. Ele é tão sofisticado que ainda não foi decifrado pelos intelectuais — e provavelmente nem pelo próprio criador. Basicamente, esse obelisco do brilhantismo consiste em dizer qualquer coisa que vem à cabeça, não importa se faz sentido ou não. Tem algo de dadaísta, um raciocínio que beira o infantil, mas também parece surrealista, uma vez que não tem compromisso com a realidade. Em outros casos, é só mentira e falta de empatia, mesmo.

O auge do Pensamento Bolsonárico são suas declarações sobre a pandemia, principalmente o trecho em que diz que a doença deve ser enfrentada “porque todos vamos morrer um dia”. Para o presidente, não faz sentido o povo se proteger, uma vez que a morte é inevitável. Talvez seja difícil ele entender que as pessoas que estão vivas preferem continuar vivas. Seguindo o raciocínio, não haveria necessidade de se construir hospitais. Afinal, quem ficar doente e morrer não está seguindo nada além do seu curso natural. Investir em saneamento básico? Para quê? Se um brasileiro pegar leptospirose e falecer, não tem problema: vamos todos morrer de qualquer maneira. Vacina? Frescura. Combate à fome? Besteira. Desemprego? Bobagem.

Até mesmo sua bandeira de campanha, o armamento da população, perde o sentido diante de sua complexa forma de pensar. Se algum bandido entrar em sua casa e matar sua família, não havia nada que pudesse mudar o destino final deles. Nada disso importa, já que nosso destino é o mesmo: o mundo do além. Devemos ser o único país do mundo onde o presidente, em vez de cuidar da vida da população, sugere que ela aceite a morte de forma resignada. É genial porque libera o presidente para fazer a única coisa que ele sabe fazer como ninguém: nada. O Pensamento Bolsonárico nunca decepciona.

Se há um elemento que não podemos subestimar atualmente é o limite da estupidez humana. Se vivesse no Brasil de hoje, e não na França do século XVII, Descartes não teria dito “penso, logo existo”, mas “penso, logo desisto”. Não há nada mais frustrante do que tentar ver a realidade sob o prisma da lógica. O pensamento cartesiano, inspirado por Descartes, foi descartado. A lista de fatos que mostra isso é quase infinita, mas vamos nos ater à discussão recente: a politização da vacina contra a Covid.

O uso político de uma doença já é de uma baixeza inigualável, uma vez que o número de mortos — seres humanos com famílias, carreiras, sonhos — passa a importar apenas para justificar uma narrativa, sem qualquer empatia com as vítimas. Os negacionistas negam, no fundo, o direito ao conhecimento. Esse governo federal ainda se sentará no banco dos réus, não apenas por sua incompetência evidente, mas por sua crueldade dolosa.

A Bolsonaro não importa que os brasileiros morram — desde que ele se mantenha no poder. Seus argumentos contra a vacina são tão pueris que parecem vir de um garoto impúbere, não de um sexagenário. É óbvio que a eficácia das vacinas deve ser provada, mas não é disso que se trata. O boicote que o presidente sugere deixa de ser uma posição política para se tornar uma questão criminosa. A vacina não nasce da origem ideológica do cientista, mas de testes em laboratório. Alguém sabe quem fez a vacina contra poliomielite? Varíola? Sarampo? Isso só importa para terraplanistas e apoiadores cegos.

Bolsonaro induz a população a erro com gráficos comprados em bancos de imagem e militares irresponsáveis sem respeito por suas próprias patentes. Ser vacinado durante uma pandemia mundial não tem nada a ver com liberdade, porque quem não se vacina pode contrair a doença e transmiti-la a outras pessoas. Explicando para o garoto impúbere citado linhas atrás: um cidadão é livre para beber uma garrafa de cachaça, mas não para fazer isso e sair dirigindo por aí, porque isso implica pôr em risco a vida de outrem. Da mesma forma, fazendeiros vacinam o gado para evitar que as infecções se espalhem pelo rebanho. O gado não tem liberdade para decidir se é vacinado ou não. Ou tem? Receio que o Brasil de hoje tenha virado uma grande fazenda — e com o líder do rebanho no comando.

A polarização que domina o Brasil produziu um efeito colateral de consequências nefastas: a morte do senso crítico. Desapareceu entre nós a vocação para diferenciar fatos de versões, realidade de fantasia. Há apenas as malditas narrativas, histórias alternativas criadas por grupos políticos para colocar em dúvida a verdade, mesmo diante de provas incontestáveis. Talvez a data de nascimento do “nós contra eles” tenha sido o dia em que Lula declarou que havia recebido uma “herança maldita” mesmo após o processo de transição de poder mais civilizado de nossa história.

O governo Bolsonaro, no entanto, leva essa divisão nacional a níveis inacreditáveis. Após incentivar aglomerações e negar os riscos do coronavírus por meses, o presidente afirma que o Brasil foi um dos “países que melhor enfrentaram a pandemia”. Isso não é verdade sob absolutamente nenhuma ótica. Somos comprovadamente um exemplo de vergonha mundial. O presidente solta apenas mais uma frase irresponsável, um ultraje à memória das vítimas. Não há esperança de que ele se comporte como um presidente, sequer como um ser humano. A Bolsonaro não falta apenas empatia, mas também humanidade. É a banalidade do mal que a filósofa política alemã Hanna Arendt tanto nos alertou — e para a qual grande parte do País não dá ouvidos.

A falta de senso crítico impede que os brasileiros analisem o que está acontecendo sem o bias político e dogmático que a personalidade do presidente impõe. Os satélites alertam que a Amazônia e o Pantanal ardem em chamas, mas seus defensores dizem apenas que “não é verdade”, sem apontar o que os leva a duvidar dessas informações. No máximo, baseiam-se na “intelligentsia artificial” manipulada por robôs virtuais pagos com o nosso dinheiro. Se um educador, cientista ou artista afirma alguma coisa, seu exército — literal e metafórico — imediatamente se posiciona contra. A realidade não importa, apenas a narrativa.

Perdemos a capacidade de observar um fato e avaliar se aquilo é certo ou errado, seu contexto, suas consequências. Há um depósito feito por um acusado na conta da primeira-dama. Isso não é uma versão ou uma opinião, mas o presidente não se dá sequer ao trabalho de desmentir ou comprovar que a informação está errada. Não importa. Em outros tempos, um fato desses derrubaria um líder honrado em qualquer lugar do mundo. Hoje, é apenas uma informação diluída pelo mugido bovino das redes sociais. Meus pêsames ao Brasil: o senso crítico morreu.

Com Felipe Machado