quinta-feira, 1 de abril de 2021

O ROQUE DO LEOPARDO DE FESTIM


Dizem que com a idade vem a sabedoria, mas não há sabedoria nas ações do pior líder mundial no combate ao coronavírus, que disputa localmente com Dilma Vana Rousseff, supostamente imbatível em incompetência, o título de pior presidente o Brasil amargou desde a redemocratização. E não foi por falta de concorrentes de peso.

No domingo retrasado (21), após comemorar seu 66º aniversário (mais um “6” e seria o número da besta) com um punhado de devotos, Jair Messias Bolsonaro colheu o ensejo para reiterar seus reptos à democracia, chamar os governadores de “tiranetes”, dizer que “estão esticando a corda”, e que fará “qualquer coisa pelo seu povo”. Dias depois, convocou uma reunião na Palácio da Alvorada com governadores, ministros e chefes de poderes e anunciou a criação de um comitê para definir medidas de combate à Covid. Ato contínuo, voltou a contestar a eficácia de vacinas, fazer campanha contra o uso de máscaras, desdenhar de doentes e colocar em dúvida o número de mortos e de ocupação de UTIs, além de entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no para questionar junto ao STF as medidas restritivas adotadas pelos governadores do Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal, notadamente o toque de recolher e o fechamento de atividades não essenciais.

Naquilo que lhe cabe, Bolsonaro é um retumbante fracasso: tardou a comprar vacinas, tardou mais ainda a liberar o urgente auxílio emergencial e pouco faz para abastecer hospitais de insumos necessários para o atendimento de doentes de Covid. Agora, pressionado pela queda acentuada de sua popularidade, tenta desesperadamente transferir a responsabilidade pela crise para os governadores — a quem acusou de estarem “matando a população de fome”.

Em seu palavrório, Bolsonaro suscitou medidas de exceção e seu poder de determiná-las. Disse que “seu Exército não vai para rua para cumprir decreto de governadores se povo começar a sair, entrar na desobediência civil” (como se falasse de uma milícia privada), levando ao delírio a camarilha de apoiadores aluados que aplaudem tudo que ele diz.  O que o povo quer a gente faz” disse o presidente, que ainda não percebeu que com o sistema de saúde em colapso, péssimas perspectivas econômicas e cansado de tanta confusão, o povo quer apenas ele pare de prejudicar o país.

Há tempos que o presidente vinha pressionando o agora ex-ministro da defesa a substituir o comandante do Exército, general Edson Pujol, que não escondia seu desconforto com suas insistentes tentativas de misturar a corporação com o governo, e por isso acabou demitido. Aliás, na esteira da demissão do chanceler de fancaria Ernesto Araújo, o Messias que não miracula promoveu uma dança das cadeiras em seu ministério, sendo a substituição do general Fernando Azevedo e Silva pelo também general Walter Braga Netto no comando da pasta da Defesa apenas uma delas.

Observação: Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa porque ele não acatou sua ordem de incorporar as Forças Armadas a seu projeto político pessoal. Eliane Cantanhede escreveu o artigo “Basta!”, em que afirmou: “Demorou, mas Azevedo e Silva cansou e ele não está sozinho ao negar ao presidente um alinhamento automático que engula os brios e os princípios das Forças Armadas para participar de qualquer tipo de ameaça ao País. Além de agir em acordo com o comandante Edson Pujol e o Alto Comando do Exército, o general teve apoio durante todo esse tempo também das duas outras Forças.” Mesmo sem ter ideia de quem seja o príncipe di Salina, protagonista do romance Il Gattopardo (O Leopardo), de Giuseppe di Lampedusa, o presidente aprendeu mudar um pouco para não ter que mudar tudo.

As mudanças envolveram José Levi, que foi substituído na AGU por André Mendonça, e Anderson Torres, que passou de secretário da Segurança Pública do DF a ministro da Justiça. As coisas ainda estão confusas, mas, aparentemente, Bolsonaro quis mostrar a sua militância desvairada que continua firme e forte após a fragorosa derrota representada pela demissão do agora ex-chanceler Ernesto Araújo. Buscou também o presidente cercar-se de pessoas de sua absoluta confiança (não é esse o caso de Azevedo nem de Levi), bem fazer uma ameaça velada de que pode dar um autogolpe.

Colocando (mais) esse furdunço em perspectiva, fica evidente que o presidente está acuado, donde a necessidade de se cercar de pessoas que lhes prestem obediência cega. Mas sua suposta demonstração de força traduziu-se num movimento arriscado, que o fragiliza. A demissão repentina e imotivada de Fernando Azevedo não desgostou os militares, que, até onde se sabe, já se articulavam para apoiar outra candidatura em 2022. A demissão de Levi, que tem bom relacionamento com o STF, queima uma ponte importante com os supremos togados. Em suma, o pandemônio armado pelo capitão evidencia (ainda mais) que ele não tem condições de tocar o barco. Ao cercar-se de esbirros que lhe prestem vassalagem incondicional, priva-se de assessores que poderiam chamar sua atenção para os eventuais (e inevitáveis) erros que vier a cometer.

Bolsonaro nunca se destacou pela sensatez ou pelo tirocínio. Sempre comeu na mão dos filhos, que também estão pintados para a guerra e querem resistir. Afinal, Araújo e Filipe Martins representam a essência do bolsonarismo raiz, e entregar suas cabeças equivale a capitular diante do “sistema”, trazendo enorme desgaste junto ao “núcleo duro” bolsonarista, com o qual o presidente conta para se reeleger. Não é fácil prever o que o presidente, que é volúvel e incontrolável, vai fazer. Mas sairá mais fraco da crise, faça ele o que fizer.

Dos seis presidentes eleitos pelo voto direto desde a redemocratização desta banânia, dois foram impichados: Collor, em 1992, e Dilma, em 2016. No primeiro caso, o substituto constitucional e, portanto, maior interessado na queda do titular era o baianeiro Itamar Franco — que deixou a articulação no Legislativo com FHC, no Senado, e Roseane Sarney, na Câmara. Collor buscou apoio junto ao PTB de Roberto Jefferson, mas não conseguiu varrer para debaixo do tapete os indícios de envolvimento o esquema de corrupção capitaneado por seu dublê de tesoureiro de campanha e factótum, PC Farias. O relatório final da CPI (instaurada a pedido do PT) apontou que US$ 6,5 milhões haviam sido desviados para bancar gastos pessoais do mandatário — o que é dinheiro de pinga diante dos bilhões que o PT e seus acólitos roubaram no Mensalão e no Petrolão. E as famosas manifestações dos “caras-pintadas”, em apoio ao pedido de impeachment assinado pelos presidentes da ABI e da OAB selaram sua sorte. Ciente de que seria apeado do cargo, Collor renunciou às vésperas do julgamento (que ocorreu em 29 de dezembro de 1992), mas foi condenado por 441 dos 480 deputados presentes e, como manda a Lei, tornou-se inelegível por oito anos.

PC Farias foi indiciado em 41 inquéritos criminais e teve a prisão decretada, mas fugiu no lendário Morcego Negro, pilotado por Jorge Bandeira de Mello, desapareceu em Buenos Aires, ressurgiu em Londres quatro meses depois, 11 quilos mais magro e sem seus famosos bifocais. Enquanto se discutia sua extradição, PC tornou a fugir, mas foi capturado na Tailândia, depois que um turista brasileiro o viu andando pelas ruas de Bangcoc. Extraditado, julgado e condenado a 4 anos de prisão por sonegação fiscal e 7 por falsidade ideológica, o careca cumpriu um terço da pena e obteve liberdade condicional. Seis meses depois, foi assassinado, juntamente com a namorada Suzana Marcolino, em circunstâncias jamais esclarecidas, mas que sugerem claramente “queima de arquivo”. Os homicídios ocorreram na mansão de PC, numa praia de Maceió. Os corpos foram encontrados no dia 23 de junho de 1996 (com um tiro no peito de cada um). Ainda que a casa fosse guardada por 4 seguranças, ninguém ouviu os tiros “porque era época de festas juninas”.

Observação: A tese de homicídio seguido de suicídio foi endossada pelo legista Badan Palhares, mas desmontada por uma série de reportagens da Folha. Segundo o jornal, Suzana era mais baixa que PC, e a diferença de altura, associada à trajetória do tiro, inviabilizava a versão oficial (o próprio Palhares escrevera num artigo que, se a altura estivesse errada, seu laudo também estaria). Na avaliação do professor de medicina legal e coronel reformado da PM George Sanguinetti, um dos primeiros a contestar o suicídio, “passional não foi o crime, mas sim o inquérito”.

No caso de Dilma, que era ainda mais desastrada que Collor, tudo ficou nas mãos de Eduardo Cunha — o Caranguejo do propinoduto da Odebrecht no Mensalão. Toda a complicada conspiração que culminou com a deposição de Collor foi substituída por uma trama que o “quadrilhão” do MDB seria alçado ao poder na pessoa do vice escolhido por Lula para as chapas vencedoras de madame. A sólida aliança que havia evitado o impeachment de Lula e garantido sua reeleição em plena efervescência do mensalão derreteu no fogo ateado pelo então presidente do Senado Renan Calheiros, o cangaceiro das Alagoas,  e seu lugar-tenente preferido, o também senador Romero Jucá.

Observação: A aliança, que levou Temer ao cargo máximo da República e o manteve lá, a despeito dos esforços de Rodrigo Janot — um adversário institucionalmente poderoso, mas politicamente inofensivo —, que não alcançou a maioria de três quintos dos deputados federais para depor o vampiro do Jaburu. Anos depois o ex-PGR confessou que chegou a ir armado ao STF para matar o semideus togado Gilmar Mendes, mas uma “intervenção divina” o impediu de puxar o gatilho.

Dilma começou a complicar sua defesa ao comprar uma briga desnecessária com o Centrão, que aplicou na “presidenta” e no PT uma espetacular surra na disputa pela presidência da Câmara. Os processos investigados pela hoje finada Lava-Jato colocaram Cunha na cadeia, mas os piedosos desembargadores e ministros mandaram-no  para casa com um adorno no tornozelo. Seu lugar-tenente de todas as horas — Arthur Lira, que é réu no STF e atual presidente da Câmara — ascendeu à  presidência da Casa que tem a prerrogativa constitucional de dar início a um processo de impeachment do presidente de plantão (há pelo menos 70 pedidos criando pó sobre a mesa da presidência da Casa do Povo). Se Rodrigo Maia, que o antecedeu no cargo, não autorizou a abertura do processo contra Bolsonaro por medo de perder na hora da disputa do voto, não será o deputado alagoano, eleito ao lado do mineiro Rodrigo Pacheco com a ajuda de R$ 3 bilhões em emendas parlamentares, que se aventurará a tal ousadia. Ainda mais depois que foi aprovada uma manobra nas despesas obrigatórias para acomodar R$ 26 bilhões de quantias substanciais pelo relator-geral da Lei das Diretrizes Orçamentárias, o senador Márcio Bittar, que elevou o valor total do disponível para R$ 51,6 bilhões (o maior nível histórico), conforme levantamento recente do texto aprovado com muito atraso.

Na semana passada houve um frisson em Brasília depois que Lira deu a entender que poderia fazer com  os processos engavetados o que Maia nunca ousou. E o alarme subiu de tom com a publicação, em manchete no Estadão de domingo, 28, de reportagem de Felipe Frazão e André Shalders dando conta de que o aparente puxão de orelhas do presidente da Câmara fora articulado em oito reuniões com pesos pesados do PIB brasileiro. A notícia acendeu o sinal amarelo para os rompantes ditatoriais do ex-capitão terrorista no principal gabinete do Palácio do Planalto. Algo do gênero “cria juízo ou a casa cai”.

O roque de xadrez no Planalto na tarde de segunda, 29, confirma que Bolsonaro, como o retrocitado príncipe Don Fabrizio Salina, muda o time para ele mesmo não ter que mudar. Os ministros da Saúde e das Relações Exteriores continuam sendo Jair Bolsonaro. Ele é quem continua mandando, e mesmo quem obedece não tem o lugar assegurado, como se comprovou com o general Pesadelo, intendente incompetente, fiel vassalo confesso e ainda assim demitido. E o novo chanceler não terá como desafiar os caprichos negacionistas e a sólida ignorância presidencial sobre qualquer assunto que mereça um raciocínio mais complicado do que contar os dedos de uma das mãos.

Com José Nêumanne Pinto