Ao contrário de todas as cidades brasileiras, Brasília não possui esquinas. Projetada para evitar qualquer tipo de confronto, seu traçado retilíneo dificulta o encontro casual. Lá, as conversas são agendadas, pois a cidade é avessa ao acaso.
Desde a sua projeção, a nova capital federal tinha como
principal objetivo evitar qualquer tipo de tumulto, revolta ou revolução em seu
espaço. Procurando se afastar das diferentes revoltas ocorridas na antiga
capital — Rio de Janeiro, que, desde
o início da República, manteve-se em constante conflito com sua população —, Brasília incorporou a repulsa soviética
ao contraditório sob mãos de Oscar Niemeyer.
Projetada na década de 1950, quando o Brasil dormia no campo
e acordava com a fumaça dos automóveis, Brasília
é fruto de uma modernização avassaladora. Entre os anos 1930-1980, o Brasil
possuía um crescimento chinês. Seu interior, doravante abandonado, passou a ser
visto como um projeto de um novo país. Dos troncos contorcidos do cerrado
nascia uma cidade racional e setorizada. Inspirada na tradição da Paris de Haussmann
do século XIX e nas cidades do comunismo soviético, velocidade, impessoalidade
e vigilância marcam o projeto do Plano Piloto.
Quando do concreto se fez palavras, Brasília passou a abrigar uma nova política no país. Distante de
greves, chibatas e bombardeios, a nova capital federal subverteu os
ensinamentos do pensador iluminista Montesquieu e criou
sua própria interpretação acerca das funções de seus Três Poderes.
Se Jânio Quadros, em
São Paulo, e João Goulart,
no Rio de Janeiro, não haviam
estabelecido o jogo político em Brasília,
coube aos militares, através de um novo golpe, organizarem a política na nova
capital republicana.
As peculiaridades do Regime
Militar brasileiro, ao contrário de outros regimes autoritários na América Latina, fizeram-se sentir logo
nos primeiros anos, quando o Congresso
e o Superior Tribunal Federal
atuaram como atores legitimadores da queda de Jango. Diferentemente de Santiago
do Chile, bombardeada no dia 11 de setembro de 1973, em Brasília não se escutaram tiros de
canhão em abril de 1964. Até o nosso golpe foi negociado.
A tendência conciliadora da política em Brasília manteve-se nos anos 1970, quando teve início a famosa
transição "lenta,
gradual e segura" para a democracia, a partir de uma anistia
"ampla,
geral e irrestrita", que absolveu torturadores e guerrilheiros.
Nos anos 1980, quando boa parte do Brasil foi às ruas em nome das Diretas
Já, Brasília, em um novo grande acordo palaciano, optou pelas eleições
indiretas a fim de concluir sua transição sem grandes turbulências em suas
asas. Consolidava-se, naquela conjuntura, a Brasília dependente e harmônica entre os Três Poderes.
Quando Fernando Collor
procurou romper esse compromisso e "caçar os
marajás", seu governo logo se desfez. Tamanha capacidade de
regenerar-se, a Praça dos Três Poderes
logo apoiou e conduziu Itamar Franco
ao fim de seu mandato. Navegantes de outrora, FHC
e Lula
compreenderam bem o funcionamento do sistema, apesar das inúmeras denúncias
referentes a compra de votos para reeleição e apoio em projetos de seus
governos. Tal relação entre “fortuna
e virtù” não se fez presente no governo de Dilma
Rousseff, quando inflação e desemprego transformaram-se em denúncias de
corrupção e pedaladas fiscais, consolidando o primeiro impeachment da Nova República
— considerando que Collor renunciou
às vésperas de seu julgamento.
Em 2021, uma nova tempestade perfeita paira sobre os Poderes
palacianos de Brasília. Em tempos
pandêmicos e inflacionários, a margem de apoio para qualquer tipo de discurso
radical se esvai. Nas últimas semanas, com a suspeição
de Moro no julgamento de Lula, o remédio amargo de Lira e a saída
forçada dos três comandantes das Forças Armadas, o governo Bolsonaro entrou no radar da imobilidade política, tão cara
a Collor e Dilma.
Apesar de muitos analistas rememorarem a conjuntura de 1964,
demonstrando claro anacronismo, a realidade em Brasília é outra: caso não
estabilize a inflação e refaça o jogo político entre Ministérios, Comandos, Congresso e STF, Bolsonaro terá que
lutar contra seu impedimento. Em Brasília, para “estancar a sangria”, somente através de “um
grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”. Golpe é coisa do
passado.
Com Victor Missiato,
doutor em História, professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie
Brasília e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre o
Desenvolvimento Humano (Mackenzie/Brasília) e Intelectuais e Política nas
Américas (Unesp/Franca).