Em sua terceira semana de trabalho e segunda de oitiva de testemunhas, a CPI da Pandemia recebe nesta terça-feira o contra-almirante Antônio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, que, entre outras coisas, deve se pronunciar sobre a recusa da agência em aprovar a vacina russa Sputnik V. Ainda sobre vacinas, a presidente da Pfizer no Brasil, Marta Díez, será ouvida depois de amanhã, quando os senadores deverão questioná-la sobre o fato de o governo ter rejeitado, em agosto de 2020, a oferta de 70 milhões de doses do imunizante produzido pela empresa.
Quem também deve dar detalhes sobre esse tema é o ex-ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República Fábio Wajngarten, cujo depoimento está agendado para amanhã. Depois de deixar o cargo em março deste ano, ele apontou o ex-ministro Eduardo Pazuello como responsável pelo atraso nas negociações com a Pfizer. O general será ouvido na comissão somente no dia 19 — seu depoimento estava previsto para o último dia 5, mas, na véspera do dia D e hora H, o ex-ministro comunicou que teve contato com duas pessoas infectadas pela Covid (doença que ele próprio já contraiu e da qual se recuperou em outubro do ano passado).
Na última quinta-feira, o Estadão noticiou que Pazuello
esteve reunido com o ministro Onyx Lorenzoni, além de ter sido flagrado
transitando sem máscara pelo hotel onde mora. Ao tomar conhecimento desse “isolamento
seletivo”, o vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues protocolou
um requerimento para que o general apresente o resultado de um teste de Covid.
Segundo o senador, a conduta da testemunha foi, na melhor das hipóteses, uma
infração à ordem sanitária, e na pior, uma tentativa de obstruir a investigação.
O pedido ainda precisa ser votado pelos membros da Comissão, mas é provável que
seja aprovado, pois há no colegiado apenas quatro titulares governistas e sete que se
classificam como “independentes” ou de oposição.
As evasivas do ministro Marcelo Queiroga na última quinta-feira
irritaram os senadores-inquiridores —
notadamente o relator e o presidente da CPI. Bem ensinado e esquivo como
um bagre ensaboado, o comandante de turno da pasta da Saúde nesta macabra gestão repetiu ad nauseam
que não lhe cabia fazer “juízo de valor” sobre opiniões do presidente da
República nem “avaliar” os procedimentos adotados por seus antecessores no
comando da pasta.
Espremido para revelar sua opinião médica sobre a obsessão do leigo Bolsonaro pela cloroquina, o cardiologista — que assumiu o cargo em 23 de março — afirmou que “importante mesmo na pandemia é a vacinação”. Disse ainda ter encomendado uma posição sobre a cloroquina à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Durante seu depoimento — que se estendeu por mais de dez horas — o médico citou 27 vezes a Conitec para se esquivar de responder se concorda ou não com a defesa que Bolsonaro faz do uso da cloroquina. Disse ter solicitado ao órgão uma posição técnica sobre o tema e alegou que, na condição de ministro, teria de aguardar o resultado.
Observação: Sob a gestão de Queiroga, a Conitec se reunia em duas oportunidades, mas a cloroquina não constou da pauta de nenhuma delas. Ironicamente, a mais recente começou na quarta-feira (5) e terminou na quinta (6), mesmo dia em que o doutor prestou depoimento à CPI. A reunião anterior ocorreu nos dias 7 e 8 de abril.
Na avaliação de Josias de Souza, o depoimento do
atual ministro foi tão deletério para a imagem do presidente da República
quanto os de Mandetta e Teich, que foram ouvidos na
semana passada. Até as pedras sabem que a cloroquina não só é ineficaz contra a
Covid como também pode ter efeitos colaterais adversos, daí sua utilização
no tratamento da Covid não dispor de aval da Anvisa. E Queiroga
não ignora a lei. No mês passado, num discurso em que celebrou o aniversário de
dez anos da Conitec, o médico declarou: “Essa Comissão é fundamental,
pois é guardiã do SUS. Somente através de avaliações próprias, baseadas no
melhor da evidência científica, nós asseguraremos aos brasileiros políticas
públicas capazes de mudar a história natural dos agravos à saúde.”
Queiroga é médico. Sua especialidade é a cardiologia.
Antes de se sentar no banco da CPI, o doutor mandou apagar do site do
Ministério da Saúde documento que indicava o uso da cloroquina no tratamento
precoce da Covid. Deve-se a descoberta à revista Piauí. O texto
apagado é de agosto de 2020. Foi produzido na gestão do general Eduardo
Pazuello. Como dito, os dois antecessores do general deixaram o
governo, entre outras razões, porque, ao contrário dele, recusaram-se a avalizar a obsessão de Bolsonaro
pela cloroquina.
A Conitec é composta de 13 membros. Sete são secretários do próprio Ministério da Saúde. Os outros seis representam o Conselho Nacional de Secretários de Saúde dos estados, o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, o Conselho Federal de Medicina, a Anvisa, a Agência Nacional de Saúde Suplementar e o Conselho Nacional de Saúde.
Ao sustentar na CPI que a legislação condiciona a edição de
protocolos médicos da pasta da Saúde à análise da Conitec, Queiroga
expos a fragilidade da posição de Bolsonaro, pois ficou subentendido
que, por ordem do presidente, o governo adquiriu insumos para a produção de
cloroquina, o laboratório do Exército fabricou o remédio em escala industrial e
a pasta da Saúde distribuiu um medicamento ineficaz no tratamento da Covid
por meio da rede hospitalar do SUS. Tudo isso à revelia de procedimentos
legais que só agora, com mais de um ano e quatro ministros de atraso, a pasta
decidiu observar.
Levando-se essas palavras ao pé da letra, a ausência de amparo
científico para a utilização da cloroquina no combate à Covid torna
ilegal a aquisição, produção e distribuição desse fármaco pelo governo e
inviável a aprovação de seu uso pela Conitec. Cabe perguntar: por que
ninguém acionou a Conitec antes? Ou ainda: por que Queiroga não
levou a cloroquina à pauta da Conitec nas reuniões de abril e maio? Em
outras palavras, ao se vacinar contra a polêmica, o ministro acabou fornecendo
material para a CPI, inoculando o vírus da prescrição ideológica da
cloroquina no organismo de Bolsonaro.
Josias revela ainda que, de acordo com um colega de
farda, “Pazuello começa a perceber que é muito estreita a fronteira entre
ser leal ao presidente Bolsonaro e ser estúpido”. Sem o foro privilegiado e
acossado pelo Ministério Público em Brasília e Manaus, o general realiza nos
inquéritos uma excursão pelos nove círculos do inferno. Há na CPI duas
diferenças que o inquietam: os refletores e a percepção de que, rendido às
conveniências do Planalto, terá de carregar não uma, mas duas cruzes — a sua e
a do presidente da República, com quem tinha uma relação na base do um
manda e o outro obedece.
Tomado pelo que diz em privado, Pazuello flerta com a
ideia de silenciar na CPI. Mas para isso teria de reivindicar no STF
o direito constitucional de ficar calado (para não produzir prova contra si
mesmo). Na condição de testemunha, ele é obrigado a responder a todas as perguntas
dos senadores, mas foi aconselhado por um advogado amigo a declarar ao Supremo
que vem sendo tratado como investigado.
Pazuello poderia sustentar, de resto, que tudo o que disser na CPI pode ser usado contra ele nos processos tocados pelo Ministério Público. Os senadores do G7, grupo majoritário na Comissão, se equipam para cercá-lo. Se levar adiante a ideia de se esconder atrás do silêncio, seu gesto terá para Bolsonaro uma aparência de Waterloo. A esta altura, o eventual silêncio do vassalo gritaria para a plateia que o suserano e seu governo tornaram-se indefensáveis.