O conflito é saudável, na medida em que leva ao consenso.
O confronto é nefasto, pois estimula o extermínio do inimigo (no Brasil de hoje em dia, adversários políticos são inimigos a ser exterminados). Assim,
cavou-se um fosso tão profundo que a construção de uma ponte escorada no bom
senso tornou-se virtualmente impossível.
A primeira vítima de toda guerra é a verdade. O dissenso
sócio-político-ideológico que infectou o Brasil é o tipo de guerra em que a verdade
fenece quando as narrativas se sobrepõem aos fatos e perece quando
extremistas acham-se no direito de ter seus próprios fatos.
Semana passada, ao entrar num avião lotado — sem ter por que
nem para que — Bolsonaro dividiu tripulação e passageiros em três grupos.
Ao fundo, as pessoas gritavam “fora, Bolsonaro!”, “genocida” e “assassino”.
À frente, uns tiravam selfies com o presidente enquanto outros gritavam “mito, mito, mito”. Entre um grupo e o outro, a maioria dos passageiros assistia à cena em constrangido silêncio.
O episódio foi uma demonstração em pequena escala da cizânia
que a antecipação da campanha do capetão criou entre os
brasileiros. Os defensores do atual governo tomam cloroquina, viajam de avião e
desfilam em “motociatas”. Seus detratores mais atávicos são esquerdopatas, saudosos
do comandante
e principal beneficiário da cleptocracia lulopetista, que também favorecia
empreiteiras cartelizadas. Mas a maioria da população — “maricas que
deveriam andar de jegue”, na preciosa avaliação do presidente — não sabe de
qual borda da terra saltará para o fogo do inferno em 2022 (como disse a
infectologista Luana Araújo,
ainda que em outro contexto).
Bolsonaro conseguiu tumultuar, confundir e dividir a
população no que tange ao isolamento social, uso de máscaras e tratamento
precoce com cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e outros fármacos cuja ineficiência
no trato da Covid está mais que comprovada. Mas foi obrigado a capitular
no que tange às vacinas — não por ter visto a luz da razão (ou da ciência, melhor
dizendo), mas devido ao “fator João Doria”.
O presidente, que parece ter um estranho fetiche pelas “calças
apertadinhas” do tucano, ficou p. da vida com o fato de o governador de São Paulo ter bancado a CoronaVac e registrado a foto da
primeira brasileira vacinada em solo nacional. Bolsonaro “acordou” quando Doria anunciou que, dada a inércia do então ministro da Saúde — Pazuello
empurrava a campanha nacional de vacinação com uma
incompetência tão proeminente quanto sua barriga —, os paulistas
começariam a ser vacinados em 25 de janeiro (data do aniversário da capital
do Estado).
Bolsonaro já provou e comprovou que, para além da reeleição — cuja promessa de extinção ele usou como bandeira de campanha em 2018 —, interessam-lhe somente a própria popularidade — que subiu no telhado — e a blindagem de sua distintíssima prole.
Observação: Em três casamentos, o presidente que acabou com a Lava-Jato porque “não
tem mais corrupção no governo” teve quatro filhos e uma filha.
Desses, somente Laura, que tem 11 anos, não é alvo de investigações. Afora
o célebre caso
de Zero Um e as rachadinhas, a PF e
o Ministério Público apuram
suspeitas contra Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Renan Bolsonaro,
que incluem tráfico de influência, contratação de funcionários fantasmas e
envolvimento na organização de manifestações que pediram o fechamento de
Bolsonaro sempre disse ser um “defensor da
família”, mas acabou demonstrando que falava de sua própria família. Não vou esperar foderem a minha família ou amigo para
trocar “alguém da segurança”, disse o capitão-honestidade na fatídica
reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, referindo-se ao comandante
da PF e ao MP do Rio de Janeiro, que já estava nos
calcanhares dos filhos Flávio e Carlos.
Com a CPI do Genocídio fechando o cerco em torno do Palácio do Planalto, o “pior líder mundial no combate à pandemia — como o capitão foi classificado pelo jornal The Washington Post quando a Covid ainda engatinhava — tem muito com que se preocupar. Sobretudo porque quase 500 mil brasileiros perderam a vida para o vírus maldito ao longo dos últimos 15 meses, e três quartos dessas mortes se deveram ao negacionismo do governo federal (de acordo com o epidemiologista Pedro Hallal).
O conselho de juristas instalado na última sexta-feira e municiado com uma montanha de documentos e depoimentos vai ajudar o “G7” a separar o que é só grotesco do que pode ser tipificado como crime de responsabilidade durante a pandemia. Mesmo assim, no dia seguinte, enquanto os ministros Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes decidiam manter as quebras de sigilo de Eduardo Pazuello, Ernesto Araújo e Mayra Pinheiro, o presidente-maravilha capitaneava mais uma “motociata”, desta feita em São Paulo.
Segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, cerca de 12 mil motociclistas percorreram o trajeto de 129 quilômetros entre a Capital e Jundiaí — um número respeitável, mas anos-luz distante das 1.324.523 motos contabilizadas por um delirante organizador do evento e compartilhada nas redes sociais por Bia Kicis, Carla Zambelli e outros bolsonaristas-raiz.
A informação de que o “Acelera com Cristo” tenha entrado para o Guinness World Records não passa de fake news. Segundo o Estadão Verifica, mesmo se o Guinness tivesse registrado a presença de mais de 1,3 milhão de motos, não haveria tempo hábil para ratificar o recorde. Sem mencionar que o número citado pelos bolsonaristas é maior que toda a frota de motocicletas, motonetas e ciclomotores da cidade de São Paulo (são 1.260.276 veículos, segundo o Denatran). Para conseguir reunir 1,3 milhão de motos, os organizadores teriam que convocar 62% de toda a frota dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo — ou 22% da frota de todo o Estado, que corresponde a 6.015.445 de motos e assemelhados.
A título de curiosidade, se todos os veículos que participaram do evento fossem scooters da marca Honda (que têm comprimento de 1,73 m) e formassem filas de 15 unidades cada. seria preciso mais de 150 km de estrada para colocar 1,3 milhão delas uma atrás da outra.
Algumas postagens nas redes afirmaram que “se metade das motocicletas levavam 2 ocupantes, a estimativa era de aproximadamente 3,9 milhões de pessoas nas ruas, sem contar as que aplaudiam e acenavam”. Essa conta não faz sentido. Mesmo que a manifestação tivesse reunido 1,3 milhão de motos, seria necessário ter três pessoas por veículo para chegar à marca de 3,9 milhões de participantes.
Por outro lado, a informação de que motociata custou R$ 1,2 milhão aos cofres públicos é procedente, segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. Policiais das três forças de segurança estaduais foram convocados para garantir a segurança do presidente e a fluidez no trânsito.
Quando nada, o governo paulista autuou o presidente Bolsonaro, a deputada federal Carla Zambelli, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, o deputado Coronel Tadeu e o ministro da Ciência e Tecnologia Marcos Pontes por não usarem máscaras na manifestação.