Nem a Velhinha
de Taubaté acreditaria quando Bolsonaro diz que pode desistir
de tentar a reeleição se não houver voto impresso. Mas essa ideia não
saiu da cabeça de nenhum oposicionista signatário dos inúmeros pedidos de
impeachment ora postos em sossego sob o derrière do presidente da Câmara.
Quem levantou a lebre foi o próprio presidente — que não pode reclamar,
portanto, se o assunto vier a tomar conta das mentes e das bocas, Brasil afora,
e ele começar a ouvir daqui em diante: "Mas não é que pode ser uma
boa?"
Não foi a intenção dele nem tampouco tratou-se de um
descuido. A hipótese foi aventada quando o capitão jogou a toalha ao admitir a
impossibilidade de o Congresso aprovar a reintrodução do voto impresso no
sistema eleitoral. Mas quais seriam as razões do presidente?
Uma possibilidade é a tentativa de fazer a récua de muares
que o capitão chama de militância a embarcar numa espécie de “queremismo”
revisitado inspirado em Getúlio Vargas para tentar conter o derretimento
da densidade eleitoral é uma. Outra, se a primeira não der certo e as
condições de competitividade descerem a ladeira e tornarem a derrota
inevitável, é antecipar-se ao desastre saindo do jogo como se o fizesse por
vontade e não por imposição das circunstâncias adversas.
A conjuntura lá na frente pode não ser a de hoje — o que não
significa necessariamente que será melhor; na conta das probabilidades, tende a
ser ainda pior, sobretudo se a comparação for com o cenário de 2018 e mesmo com
a situação antes de a pandemia conferir a Bolsonaro a medalha de ouro num
hipotético pódio de maus governantes. Hoje ele já não pode cometer barbaridades
tais como nomear o filho embaixador nos Estados Unidos, insultar a mulher do
presidente francês, fazer troça da China, recusar-se a comprar essa ou aquela
vacina, dar aval a pregações pelo fechamento do STF, bradar coisas do
tipo "agora chega" ou "acabou, porra!" e por aí vai.
Surpreendente é que um dia tenha podido, mas não pode mais.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ensinam em Como as Democracias Morrem que os
dois pilares de sustentação das “grades de proteção” dos estados de plenos
direitos são a tolerância e a reserva institucional (noção de limites no
exercício do poder). A tolerância é diária e constantemente agredida pelo
sectarismo extremo dos adeptos da crença de que adversários devem ser
aniquilados. A reserva institucional é afrontada pela ausência de comedimento
de Bolsonaro na cadeira presidencial.
Quando o país simpatiza com a figura de um governante, tende
a tolerar a testagem de limites. Lula, por exemplo. Quis acabar com a
autonomia das agências reguladoras, tentou controlar a imprensa, reclamou das
amarras dos órgãos de fiscalização (do meio ambiente, inclusive), desdenhou da
oposição, calou enquanto petistas qualificavam o STF como “tribunal de
exceção” e introduziu na vida nacional a maldita dinâmica do “nós contra
eles” — plantando a semente que Bolsonaro cultivou na base do
maquinário tão pesado quanto obsoleto e se deu mal. Por falta de organicidade
partidária, de identificação popular, excessivo e descontrolado ressentimento,
uso primário dos instrumentos de distração, vocação à crueldade, personalidade desagregadora
e déficit no quesito olfato político. Lula, o picareta dos picaretas, é o
contrário disso tudo e, por amado, foi tratado com indulgência.
Também diferentemente do petista, Bolsonaro, eleito
por exclusão, já tomou posse altamente rejeitado. Além de não ter trabalhado
para mudar essa condição, só fez aprofundar e ampliar a desaprovação. A
presença dele na Presidência tem sido um transtorno, é fato. Mas é verdade
também que às ações malfazejas têm correspondido reações benfazejas. Questões
que estavam adormecidas começaram a ser enfrentadas.
A exorbitante presença de militares no governo resultou no
apoio praticamente unânime à emenda que restringe a presença das fardas em
cargos de natureza civil. O uso abusivo da Lei de Segurança Nacional pôs para
andar a reformulação desse entulho autoritário.
A insistência de Bolsonaro no voto impresso — até
outro dia defendido por gente equivocada, mas de boa-fé — consolidou a
aprovação ao sistema eletrônico. E até o poder monocrático do presidente da
Câmara, sem data-limite para o exame de pedidos de impeachment, já é objeto de
um projeto de resolução em tramitação na Casa.
É assim que sociedades de firmes convicções democráticas
aplicam dribles em governantes de fortes tendências autoritárias.
Com Dora Kramer