No jargão da política, "jabuti" é um adendo que um parlamentar escamoteia no texto original de uma proposta legislativa, esperando que o acréscimo passe despercebido e seja aprovado juntamente com a proposta principal. Trançando um paralelo com o universo da informática, seria o mesmo que embutir um trecho de código malicioso em um aplicativo legítimo para induzir os usuários a "comprar gato por lebre". O nome do quelônio em questão ganhou essa acepção graças à velha máxima de que "jabuti não sobe em árvore; se está lá, foi enchente ou mão de gente."
Foi através de um "jabuti" colocado na LDO aprovada na última quinta-feira que o Congresso triplicou o valor do fundo eleitoral — o principal mecanismo de financiamento de campanhas depois que o STF vetou as contribuições de pessoas jurídicas, em 2015. O montante estabelecido é dividido entre os partidos, que decidem como bancar as campanhas. Para se ter uma ideia, nas eleições municipais de 2020 o valor foi de R$ 2 bilhões; nas eleições gerais de 2018, de R$ 1,7 bilhão. Se essa imoralidade for mantida, o butim passará de US$ 446 milhões para US$ 789 milhões por ano.
A escumalha que se elege para roubar e rouba para se
reeleger afirma que o "fundão" é fundamental para financiar a democracia,
quando se trata na verdade de uma afronta corporativista que desmoraliza os partidos perante
o eleitorado. A excrescência da vez foi votada num destaque suscitado pelo Partido
Novo — que pedia a exclusão desse aumento de verba — e obteve 278 votos a favor
na Câmara e 40 no Senado. Cabe ao presidente da República vetar o descalabro,
mas Bolsonaro depende do Centrão para continuar desafiando a lei
da gravidade, e o Centrão quer o dinheiro do "fundão"...
Esse aumento absurdo vem
sendo criticado tanto pela oposição
quanto por parlamentares governistas, e o veto presidencial, defendido tanto por políticos quanto pela população nas redes
sociais. O problema, de acordo com Merval Pereira, é que o fundo
eleitoral corresponde a uma porcentagem da verba do TSE. e não é possível simplesmente alterar a porcentagem aprovada (25%) para outro percentual qualquer.
A sucessão de medidas absurdas no atual governo se repete dia sim, outro também, com, com tímida resistência popular. Como Bolsonaro não vai mudar, o Brasil precisa mudar o presidente — ou seja, depor o negacionista que fomenta aglomerações, desqualifica as vacinas, defende criminosamente num "tratamento precoce" que até seu bonifrate da vez no Ministério da Saúde contraindica. Um chefe do Executivo cuja política genocida é responsável por quatro de cada cinco das 540 mil mortes causadas pela Covid (até agora) e que diz estar cagando para a CPI e não pode permanecer no cargo.
Infelizmente, o caminho do impeachment é longo, tortuoso, e só o presidente da Câmara tem poderes constitucionais para dar o primeiro passo (detalhes nesta postagem). Para piorar, a única alternativa depende do procurador-geral República, a quem cabe pedir autorização ao STF para processar criminalmente o líder da Nação. E com o deputado-réu e mandachuva do Centrão Arthur Lira na presidência da "Casa do Povo" e o vassalo Augusto Aras à frente da PGR...
Há quem defenda a adoção do semipresidencialismo, com
eleição direta do presidente e a chefia do governo sustentada pelo apoio
político da Câmara Federal. Assim, um voto de censura poderia resolver uma crise
como a atual sem grandes traumas, e a formação de um novo gabinete recolocaria
o bonde nos trilhos. Mas há alguns senões.
Mudar a toque de caixa o sistema eleitoral e aprovar a maior
reforma política já feita desde a redemocratização, de modo a garantir que as
novas regras passem a valer já nas eleições do ano que vem, faz parte de um
golpe legislativo que está em curso. O mais grave, também segundo Merval,
é a adoção do distritão, que permite retirar da disputa os votos de
legenda para favorecer os chamados puxadores de votos, pois isso dificultaria a
renovação política. Nesses termos, só teriam espaço nos partidos (que são
verdadeiros feudos) os políticos já eleitos e bem votados. Na melhor das hipóteses,
seria admitidos artistas, jogadores de futebol e outros Tiriricas de
plantão. Em suma: o que é ruim ficaria ainda pior.
Mudando de um ponto a outro, recentes pesquisas de opinião
pública indicam que a reprovação do atual governo passa de 50% e que 54% dos
entrevistados apoiam o impeachment de Bolsonaro. Por um lado, isso
estimula a articulação de uma "terceira via"; por outro, impõe um
dilema aos eventuais candidatos: mirar a artilharia em Lula ou em Bolsonaro?
Há quem veja o ex-presidente ex-presidiário e agora ex-corrupto como alvo preferencial (caso de Ciro Gomes) e quem aposte no derretimento do capitão, o que, em tese, poderia fazê-lo jogar a toalha. Na avaliação de Dora Kramer, só o tempo será capaz de construir um consenso — se for possível chegar a ele, claro.
Fato é que os dois personagens posicionados na linha de tiro devido à condição de preferidos nas pesquisas não escondem o desejo de se enfrentar sem os empecilhos de terceira, quarta ou quinta via. Isso porque um julga o outro detentor da maior rejeição. O Datafolha diz que 59% dos consultados prefeririam não votar em nenhum dos dois — o índice era de 54% há dois meses. Isso consolida a ideia da alternativa e já conquista adeptos. O presidente do PSD, Gilberto Kassab, era um descrente dessa possibilidade, mas passou a defendê-la e até a apresentar um nome à mesa de negociações: o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Estimulado, Pacheco recentemente saiu do coma institucional e passou a marcar distância de Bolsonaro. Por ora, Kassab não direciona artilharia contra Lula e, a fim de firmar posição contra o presidente, chega a manifestar preferência pelo petista na hipótese de um segundo turno entre os dois.
Já ACM Neto, presidente do DEM, acha que essa é uma questão ainda em aberto. Bruno Araújo, presidente do PSDB, considera politicamente mais eficaz o centro trabalhar para tirar o petista (ou quem venha a concorrer sob o patrocínio dele) da disputa final. Na visão do tucano, embora o Brasil seja antipetista, Lula é maior que o partido, tem uma situação político-eleitoral bastante mais estável que Bolsonaro e não sofre o desgaste que acomete o presidente. Sendo potencialmente mais forte, o molusco deveria ser tratado pelos adversários com rigor.
Em suma, uns acreditam que Bolsonaro derreterá por gravidade, enquanto outros acham arriscado deixar Lula correr à vontade, livre dos obstáculos do contraditório. A despeito das opiniões divergentes sobre momentos, pessoas e oportunidades, há dois pontos em comum no grupo que procura abrir um espaço do meio junto ao eleitorado. Primeiro, o jogo só começa mesmo quando os candidatos se apresentarem ao público, a fim de que uma disputa para além de Lula e Bolsonaro deixe de ser mera hipótese (portanto, haveria tempo para a tomada de posições personificadas em nomes). Segundo, será um erro mortal repetir 2018, quando as forças de centro não conversaram entre si nem foram em busca do eleitor. Na realidade, ficaram postas em sossego. De um lado, com um misto de perplexidade e descrença quanto à possibilidade de alguém tão fora do esquadro como Bolsonaro virar presidente da República. De outro, certas de que o antipetismo, naquela altura no auge, daria conta de tirar o PT do páreo. Por esse raciocínio, estariam no segundo turno sem fazer força.
Uma grandeza em matéria de autoengano e descolamento dos
partidos em relação a sentimentos preponderantes e latentes na sociedade. A
disposição de não repetir tamanho equívoco é a mola mestra do chamado “polo
democrático”, cujos movimentos são avaliados por dois diferentes pontos de
vista. Com excessiva lentidão, na avaliação de quem vê nisso sinal de fracasso
antecipado, ou com cautela estratégica, na concepção otimista dos articuladores
mais convictos desse campo.
Há razoabilidade em ambas as maneiras de pensar. É verdade
que o centro não terá êxito se considerar suficiente se apresentar apenas como
uma manifestação de equidistância entre extremos desprovida de conteúdo. Mas é
verdade também que o Brasil não avançará deixando-se aprisionar por uma agenda
regressiva de acertos de contas com o passado.
A ver.