sexta-feira, 2 de julho de 2021

A OSPÁLIA NACIONAL

A CPI do Genocídio é um circo, ou melhor, mais um circo, até porque o povo brasileiro é visto pelos políticos em geral como uma ospália (em atenção a quem não está familiarizado com o termo, “ospália”, no bom português do asfalto, significa “bando de palhaços”). Mas a política é a arte do possível e o ótimo, inimigo do bom. 

Em última análise, a CPI é o que se tem para hoje. Quando mais não seja, as investigações trouxeram a lume aberrações de cuja existência a maioria de nós já desconfiava. O problema é que eternizar as discussões pode levar a nada. E cada depoimento — mesmo aqueles em que os depoentes se valem do direito de ficar calados, como fez Carlos Wizard na última quarta-feira — suscita mais fatos espúrios que demandam investigação. Chegou-se mesmo a ressuscitar a frase que ouvi pela primeira vez do ex-ministro supremo Teori Zavascki, que, referindo-se à Lava-Jato, disse a seus pares: “A gente puxa uma pena e vem uma galinha”.

ObservaçãoAziz disse que a comissão vai recorrer da decisão que permitiu a Wizard ficar em silêncio e que o empresário não pode ficar sem punição por defender abertamente o tratamento precoce com remédios sem comprovação e, pior, debochar das pessoas mortas no município de Porto Feliz (SP), que, segundo ele, só foram a óbito porque decidiram ficar em casa. 

O depoimento de Francisco Maximiano, sócio da Precisa Medicamentos, estava agendado para ontem, mas o presidente da Comissão alterou o cronograma depois que a ministra Rosa Weber concedeu ao empresário o direito de ficar calado. Com isso, o depoente da vez passou a ser o policial militar Luiz Paulo Dominguetti, que disse à Folha ter iniciado tratativas com o governo, em nome da empresa Davati Medical Supply, para vender 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca. O acordo não foi adiante, segundo ele, porque o diretor cobrou propina de US$ 1 por dose. A AstraZeneca disse não ter intermediário para venda de sua vacina, que no Brasil é distribuída pela Fiocruz.

Vamos ver se eu entendi: Um cabo da PM de MG, endividado até a medula, troca a farda pela mala de mascate e se apresenta como representante uma empresa americana que oferece 400 milhões de doses de vacina justamente ao país que esnobou a Pfizer e tripudiou da “vachina do Doria”, enquanto governantes do mundo inteiro davam o reino por um cavalo, digo, por imunizantes. 

As negociações são feitas num botequim cujo prato do dia são US$ 400 milhões em propina. Eis senão quando surge um áudio que desacredita o deputado Luis Miranda, mas, que logo assume ares de cavalo de Troia (a gravação foi feita no ano passado e tinha a ver com luvas cirúrgicas). O cabo recua. Seu celular é apreendido para perícia. 

Chapéu de otário é marreta”, diz o presidente da CPI. O setor de logística da Saúde tornou-se cu de Maria Joana durante a gestão de Pazuello, o ás da logística, e Bolsonaro não dá um pio sobre a participação do deputado Ricardo Barros nos negócios do Ministério. 

Passados dez dias, o presidente não desmentiu a informação do ex-amigo Miranda, e Barros permanece na liderança do governo. Continua em pé a acusação de propina no conto do vigário da multinacional americana. Suspenso, o contrato da Covaxin ainda não foi revogado. Permanece retida a cifra de R$ 1,6 bilhão reservada para o pagamento do imunizante indiano, ainda sem o aval da Anvisa. Brasília vive mesmo dias surreais

A denúncia resultou na exoneração de Roberto Dias, que nega as acusações (para surpresa de ninguém) e diz sofrer retaliações, mas emails comprovam que governo negociou oficialmente com a empresa. Dias foi indicado para o cargo pelo líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros. Também segundo a Folha, a empresa buscou a pasta com uma proposta feita de US$ 3,5 por dose (depois disso passou a US$ 15,5). “O caminho do que aconteceu nesses bastidores com o Roberto [Dias] foi uma coisa muito tenebrosa, muito asquerosa”, afirmou Dominguetti.

Observação: Segundo O Antagonista, desde que foi avisado por Luis Miranda sobre o esquema da Covaxin no Ministério da Saúde, Bolsonaro se encontrou com Ricardo Barros ao menos dez vezes, mas o deputado diz que em nenhum desses encontros o presidente mencionou a denúncia ou questionou-o sobre o assunto. Por vias tortas, o líder do governo entregou o governante.

Segundo o relator da CPI, senador Renan Calheiros, a página do “negacionismo ideológico” do governo em relação à pandemia já foi virada. Agora, diz ele, o foco será as acusações de irregularidades na compra de vacinas, e o caso da Covaxin é relevante porque há indícios da participação direta do presidente Jair Bolsonaro. Já o senador Marcos Rogério, vice-líder do governo, diz que a Comissão não vai encontrar irregularidades na compra da Covaxin, e que o pagamento nem chegou a ser feito. e que a CPI vem blindando os governadores suspeitos de corrupção. “No caso dos governos estaduais, pagaram adiantado. Se quiserem investigar pra valer, contem comigo, mas se quiserem fazer circo, jogo pré-eleitoral, não. Aí é a CPI da palhaçada, da patifaria, do faz de conta”, disse o senador.

Diante do avanço das investigações, o governo busca manter de pé a aliança com o Centrão e evitar o alastramento da crise política, que tem no líder do governo na Câmara o personagem central. A pressão se agravou na quarta-feira, 30, com a apresentação do superpedido de impeachment assinado por partidos de esquerda, centro-direita, parlamentares que romperam com o governo e integrantes de movimentos sociais, reunindo mais de 120 representações já protocoladas na Câmara.

Acuado, Bolsonaro voltou a atacar a CPI: “Não conseguem nos atingir, não vai ser com mentiras ou com CPI integrada por sete bandidos que vão nos tirar daqui”, disse o presidente, referindo-se ao grupo de senadores que é maioria na comissão. Mas não disse quantos bandidos há no Planalto e cercanias, talvez porque “não sabe o que se passa em seus ministérios”.

Na segunda-feira (28) a Folha revelou que Flávio Pansieri, advogado do deputado Ricardo Barros, atuou como representante legal da vacina chinesa Convidecia no Brasil, participando, inclusive, de uma reunião com a Anvisa. A CPI quer agora apurar a negociação da Convidecia com o Ministério da Saúde.

No dia 27, após ter sido apontado por Luis Miranda como o parlamentar que atuou em favor da aquisição de vacinas superfaturada, Ricardo Barros divulgou nota apresentando a íntegra da defesa preliminar enviada à Justiça Federal. O documento é assinado por Pansieri, que era sócio do genro do deputado até março passado, e acompanhou Barros durante encontro com o presidente em 24 de fevereiro.

Ao ser questionado sobre o superpedido de impeachment, o presidente da Câmara, Arthur Lira, minimizou a estratégia: “O que houve nesse pedido? Uma compilação de tudo o que já existia nos outros. E, sobre esses depoimentos, quem tem de apurar é a CPI. É para isso que ela existe. Então, ao final dela a gente se posiciona aqui, porque, na realidade, impeachment como ação política a gente não faz com discurso, a gente faz com materialidade”, disse o deputado-réu, mandachuva do Centrão e adversário de Barros dentro do PP.

Voltando a Roberto Dias, a demissão sumária e sem explicações de um diretor com cargo estratégico na Saúde deixou clara a pressão sofrida pelo governo. Ao mesmo tempo, o Planalto tenta identificar se há mais bombas de efeito retardado programadas para explodir no ministério. Zero Três se reuniu na última quarta com o ministro Marcelo Queiroga para saber detalhes do pente fino que está sendo feito nos contratos para aquisição de imunizantes. Wagner do Rosário, ministro da CGU, disse que apresentará suas conclusões no prazo de dez dias (foi dele quem partiu o parecer recomendando a suspensão do contrato com a Precisa).

Setores do governo avaliam que Arthur Lira estimulou o deputado Luiz Miranda a denunciar a suspeita de prevaricação de Bolsonaro à CPI para enfraquecer Barros, seu rival dentro do Progressistas. Apesar do lamaçal, o Planalto ainda não decidiu se afastará o deputado da liderança. A princípio, isso vai depender do depoimento dele à Comissão. Se for bem e sobreviver, ele poderá continuar no cargo; se for mal, será rifado.

A decisão de dar ou não seguimento a pedidos de impeachment do presidente da República é do presidente da Câmara. Lira foi guindado ao posto por Bolsonaro, que até o momento não tem do que reclamar, como também não tem motivos de queixa do desembargador piauiense que promoveu a ministro do STF em outubro do ano passado, mas isso é outra conversa. Enquanto o líder do Centrão blindar o chefe, não haverá processo de impeachment — e ainda que assim não fosse, não haveria quórum para apear Bolsonaro da Presidência.

Para quem não se lembra de como funciona esse circo, a apresentação da denúncia do P.R. por crime de responsabilidade (no caso de crimes comuns, cabe ao PGR apresentar a denúncia e ao STF autorizar a abertura do processo) pode ser feita por qualquer cidadão brasileiro, mas a análise — ou seja, se a denúncia cumpre os requisitos previstos em lei — é prerrogativa exclusiva do presidente da Câmara (vejam quanto poder se concentra nas mãos de uma única pessoa). Caso a denúncia seja aceita, uma Comissão Especial (constituída por representantes de todos os partidos) é formada e incumbida de analisar o caso.

A partir de então o acusado tem o prazo de dez dias para apresentar sua defesa (note que a Comissão pode determinar a realização de outras diligências para esclarecer melhor a denúncia, como ouvir testemunhas, por exemplo). Ao final, se o parecer for favorável, a instauração do processo só se dará se 342 deputados (maioria de 2/3) votarem a favor. Atingido esse quórum, a denúncia é enviada ao Senado e analisada à luz da admissibilidade da acusação. Nessa etapa, porém, o Senado apenas autoriza ou não o prosseguimento do processo (por maioria simples, ou seja, 41 votos se todos os 81 senadores participarem da sessão). 

A essa altura o mandatário acusado passa a ser considerado réu e é afastado do cargo por 180 dias ou até o final do processo, o que ocorrer primeiro. O julgamento também final fica a cargo dos senadores. Para que haja condenação, é preciso que mais de 2/3 do plenário vote nesse sentido — ou seja, mais de 54 dos 81 senadores. Caso o quórum seja alcançado, o presidente afastado perde o cargo definitivamente e é inabilitado (ou seja, tem os direitos políticos cassados) pelo período de oito anos.