Bolsonaro recebeu alta na manhã de ontem, mas "continuará
sendo acompanhado", segundo o boletim médico divulgado pela Secom. Na
saída do hospital, ele disse que um estudo feito nos EUA dá conta de que a obesidade
é a principal causa das mortes por Covid, e que vai chamar o ministro Queiroga
para discutir a possibilidade de utilizar a proxalutamida
no tratamento da doença. Para não perder o costume, o capitão criticou o uso de
máscaras, o lockdowns e o governador João Doria. Sobre a CPI,
disse que a comissão deveria se espelhar nos EUA e procurar formas de combater
a pandemia e não o seu governo "Eu já disse, só Deus me tira daquela
cadeira", falou. Sobre o voto impresso, afirmou que “Não
existe eleições sem transparência, isso é fraude. Não queremos isso".
Questionado sobre Pazuello prometer a um grupo de empresários comprar 30
milhões de doses da CoronaVac por quase o triplo do preço negociado pelo
Butantan, Bolsonaro minimizou dizendo que Brasília é um "paraíso
de lobistas", e que "muitas pessoas foram recebidas no
ministério". Então tá.
Há textos que você começa a ler e não consegue mais parar.
Outros que você não consegue deixar de largar. Este tem o dom de inverter as
forças de atração: é ele que não me larga desde a primeira leitura, há mais de
um mês. O recorte correspondente me acompanha, como um miasma, obrigando a
releituras diárias, a cada dia mais espantosas. Deve ser guardado como prova de
um contraste histórico que jamais se repetirá: o presidente que se gaba
de nunca ter lido um livro foi sucedido por alguém que se jacta de ter lido
todos os livros que nunca leu. Se leu, não assimilou. Se assimilou, nunca
demonstrou. Naquele célebre vídeo do guru Marcelo
Branco, Dilma levou constrangedores segundos para
lembrar o livro que estava lendo, só o fazendo, penosamente, após o sopro amigo
da assessora. Por isso, a tal “Dilmoteca básica” é uma coleção
extraordinária de embustes transformados em gênero literário.
A tese central da matéria da Folha — “De
todas as diferenças entre a presidente eleita e seu antecessor, uma das mais
marcantes é a sólida formação literária da próxima ocupante do Palácio do
Planalto” — é desmentida a cada linha do texto. Mas as
paixões literárias da presidente são tantas e tamanhas que, a certa altura, ela
diz que chegou a pensar em comprar uma casa só para guardar seu “acervo”. José
Mindlin era mais modesto: o maior bibliófilo do país morava na
própria casa onde mantinha seus 30 mil livros.
Não era intenção de Fernando conversar com
a “bibliófila” Dilma Rousseff, mas compor seu perfil biográfico.
Primeiro falou a fã de esportes, que de pronto recordou-se de sua “primeira
vez” no Maracanã, em 1969. (Teria sido um jogo do Flamengo, mas ela não lembra
contra quem. Detalhe que deixa essa história muito estranha: Dilma/Stella estava
na clandestinidade — que tipo de guerrilheira com a cabeça a prêmio, ainda por
cima mineira, se arriscaria a ir ao Maracanã à toa, naquela época duríssima? O
pessoal do MR-8 esteve na porta do estádio no dia 7 de setembro daquele mesmo
ano, mas para desovar o embaixador Charles
Elbrick (jogavam Fluminense e Cruzeiro). Dilma se
expôs para ver a festa da torcida do Flamengo: “Eu fiquei assim
abestalhada com as bandeiras. É de perder o fôlego”. De perder o fôlego é o
amor de Dilma pelos livros, desde cedo.
A transição de assuntos — domingo no
Maracanã para hábitos de leitura — foi meio brusca. Ela desanda
a falar: “Sobre a memória, quem tem razão era o Proust. Ele falava do
sabor e do odor, dois sentidos primitivos que suportam um edifício imenso da
recordação”. Esse Proust da Dilma,
que “falava” do sabor e do odor, parece um enófilo, não o célebre escritor
homônimo. Mas para provar que leu o monumental “Em
busca do tempo perdido”, ela faz referência às… às madeleines, única
coisa que quem nunca leu Proust sabe sobre Proust.
Depois de revelar que, “em matéria de poesia”, gosta
de João
Cabral, Cecilia
Meirelles e Fernando
Pessoa (de quem Dilma, numa entrevista célebre antes
da eleição, surrupiou o célebre “navegar é preciso”, atribuindo-o a Ulysses
Guimarães), entra mais um olhinho puxado na história: “Eu consigo
além disso gostar do Bashô, sabe quem é Bashô?”,
pergunta ela ao colunista, para em seguida responder e mostrar autoridade: “Um
monge japonês que inventou o haicai”. Bem, Bashô não
era monge e quem diz que ele “inventou” o haicai não é propriamente um leitor
de haicais, escola poética que exige precisão formal absoluta.
Para demonstrar que não tem “um” gosto, Dilma vai
então do Japão medieval de Bashô à Nova Inglaterra. “Gosto
apaixonadamente de uma mulher chamada Emily Dickinson, a senhora de Amherst”.
De novo, a leitora de fachada ou de orelha se trai com epítetos esquisitos –
“senhora de Amherst”? Quem se refere assim a “uma mulher chamada” Emily
Dickinson é para mostrar que sabe em que lugar dos Estados Unidos
a autora nasceu, apenas isso. Gostaria de ouvir Dilma discorrendo
sobre a obra de Emily. Bastaria um livro.
Espere: a coisa está ficando melhor. Ela retorna a Proust,
o das madeleines. “Gostei do Proust para mais de metro”, diz a
bibliófila métrica. Mas, eclética, vai logo de Paris a Ilhéus, das madeleines
ao cacau: “Também adorei, aos 13 anos, quando meu pai me deu o Jorge
Amado”. Como assim, “o Jorge
Amado”? Ela explica: “Foi Capitães
da Areia, São
Jorge dos Ilhéus, todos os outros”. Ou seja: a obra
toda do autor. Imagine o cenário: Belo Horizonte, 1960 — Dilma tinha
13 anos, ainda usava laçarotes na cabeça e Jorge Amado já
tinha escrito 11 títulos. Petar Roussev [pai da ex-presidanta]
chega em casa equilibrando-se atrás de um pacote de livros. Dilma adorou
“o Jorge Amado”.
Era uma menina de paixões literárias arrebatadoras,
ecléticas. “Amei de paixão o Machado
de Assis (“o” Machado significando,
claro, toda a obra dele), mas também o Monteiro
Lobato.” Para não deixar dúvida sobre o Lobato a
que se referia, explicou: “A Emília, o Pedrinho, a Narizinho, o Visconde,
a Cuca”, a turma toda.
Pois bem: a menina que se entregava a obras completas de autores
seminais deu lugar à moça idealista que pegou em armas e esteve na
clandestinidade ou presa por muitos anos — e a biblioteca do DOPS não
era exatamente a do Congresso americano. Depois, à “economista” que logo
entraria para o serviço público e não largou mais o osso, sempre absorta em
relatórios enormes sobre quilowatts/hora e, mais recentemente, o Minha Casa,
Minha Vida. A leitura “literária” naturalmente ficou em segundo plano, não?
Errado. “Eu compro muito livro, sempre mais do que consigo ler. Tenho
aquela teoria de que estou fazendo um estoque (…) Vai que aconteça alguma coisa
e eu não tenha condição de ficar comprando livro? Então, eu estoco”.
O melhor do estoque foi guardado para o final. O texto
relata que Dilma, em viagem à China com Lula, fez uma
demanda sui generis: “Enchi a paciência do embaixador para me dizer qual
era o romance chinês equivalente aos romances nossos. Qual é o Charles
Dickens deles. Qual era o Balzac,
o Flaubert,
o Shakespeare”.
Não sei se o senhor embaixador chegou a apontar o “Shakespeare
chinês”, mas deve ter indicado alguma coisa: Dilma contou
a Rodrigues que trouxe para o Brasil um catatau local
traduzido para o inglês. Três volumes. “Mas o diabo não era isso. Eram os nomes
dos personagens”. Dilma estranhou aqueles nomes esquisitos: “Temos uma
baixíssima familiaridade com nomes chineses”, surpreende-se ela, sem
levar em conta que os chineses também não têm muita familiaridade com nomes
como Rousseff, Carvalho ou Eustáquio.
Mas Dilma, que leu o Balzac chinês de cabo a rabo,
não se apertou, porque tinha uma estratégia: “Você anota todos os nomes
num papel para não se perder totalmente”.
Esse pedaço de papel — com os nomes chineses caprichosamente
anotados pela presidente Dilma — sem dúvida valeria mais no
mercado de obras raras do que os originais dos Pergaminhos
do Mar Morto ou dos Protocolos
dos Sábios de Sião.
Com Augusto Nunes