Uma reunião entre os presidentes dos três Poderes da República estava marcada para as 11h de ontem. Na pauta, a ordem do dia era discutir "balizas sólidas para a democracia". Bolsonaro era o principal partícipe, mas o menos interessado em "balés diplomáticos". Aliás, todas as óperas bufas que o capitão foi obrigado a protagonizar travestido de "civilizado" não passaram do primeiro ato. Mas dez dias de soluços ininterruptos e uma forte dor abdominal culminaram na internação do presidente, na madrugada desta quarta-feira. Consequentemente, os compromissos agendados foram cancelados, incluindo a tal reunião.
Interlocutores afirmam que Bolsonaro só pensa em se
reeleger e submete qualquer outro tipo de consideração — como "intervencionismo"
ou "liberalismo" na política econômica — ao cálculo
político-eleitoral de prazo curtíssimo. Curiosamente, uma de suas bandeiras de
campanha foi justamente o fim da
reeleição. Às vésperas do primeiro turno, o então candidato afirmou que
"se saísse vitorioso nas urnas, a nova regra passaria a valer para
ele próprio".
Vale lembrar que a Constituição de 1988 não previa a
reeleição de chefes do Executivo, mas FHC não só mudou
as regras do jogo como foi o primeiro a se beneficiar da mudança. Desde
então, todos os inquilinos do Planalto que demonstraram interesse em prorrogar
o contrato de locação lograram êxito, muitas vezes de forma relativamente tranquila
— caso do próprio grão-duque tucano, que derrotou Lula no primeiro turno
do pleito de 1998, e do próprio Lula em 2006, a despeito do escândalo do
Mensalão.
Em franca campanha contra as eleições do próximo ano, Bolsonaro estimulou uma crise política entre os três poderes repetido, sem provas, que o sistema eleitoral adotado no Brasil é vulnerável a fraudes. "Se não houver eleições justas, não haverá eleições no ano que vem. Não tenho medo das eleições, mas só entrego o poder a quem me ganha no voto confiável. Do jeito que está hoje, corremos o risco de não ter eleições no ano que vem", disso o capitão.
Suas ameaças desencadearam uma série de reações entre os presidentes do Congresso, que rejeitaram publicamente as manifestações do chefe do Executivo. Nesta segunda-feira, o presidente do STF já havia se encontrado com Bolsonaro para impor limites a seus comentários, que incluíam ofensas contra outro ministro da Corte, Luís Roberto Barroso, que também é presidente do TSE. Fux cobrou respeito pelas instituições e pela Constituição, e o próprio Barroso, ofendido advertiu o presidente de que suas ameaças às eleições constituem um crime de responsabilidade.
Voltando à questão da reeleição, Bolsonaro pode se tornar um ponto fora da curva. Recente pesquisa do Datafolha apontou que 61% dos entrevistados o rejeitam e 51% reprovam seu governo. Nesse cenário, ele só conquistaria o tão sonhado segundo mandato no tapetão.
O general Carlos Alberto dos Santos Cruz classificou
como "ameaças absurdas" as declarações de que pode
não haver eleição no ano que vem se o Congresso não aprovar o
voto impresso. Por outro lado, a
postura do ministro da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas é
motivo de preocupação.
Cerca de 250 artigos divididos em 9 títulos da Constituição
de 1988 delimitam as fronteiras entre os Três Poderes da República. Mas o
motivo de preocupação não está na Constituição — que já foi remendada mais de
100 vezes nas últimas 3 décadas —, e sim no delirante projeto de poder do
mandatário de turno e no seu modo de fazer política.
Há 30 meses que o presidente se move no mapa-múndi em
confrontos simultâneos com a China, a União Europeia, a OMS e as organizações
internacionais de meio ambiente e de direitos civis. Mantém-se permanentemente
em pé de guerra com o Congresso e ataca o Judiciário dia sim, outro também. De
um tempo a esta parte, a CPI do Genocídio tornou-se o inimigo da vez. Em
suma, sua ambição pessoal suplanta o interesse público na disputa por reservas
patrimoniais e corporativas no orçamento da União, Estados e Municípios.
O ministro Luiz Fux foi elegante ao chamar Bolsonaro "para uma conversa", mas o problema é que, a exemplo do Escorpião
da Fábula, o presidente é incapaz de agir contra a própria natureza, não obstante o fato de o manifesto de ex-procuradores-gerais da República, o inquérito
aberto pela PF (por determinação da ministra Rosa Weber, diga-se)
para investigá-lo de prevaricação no caso da Covaxin, a atitude menos
subserviente do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o avanço da CPI
deixarem claro que ofensivas antidemocráticas não encontram respaldo na
República.
Não na banda sadia dela.