First things first, dizem os gringos, numa alusão a prioridades. Assim, antes de passar ao assunto do dia, relembro ter criticado enfaticamente a maneira espetaculosa e irresponsável com que a mídia noticiou, na última terça-feira (8), a suspensão dos testes da vacina desenvolvida pelo laboratório AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford (detalhes nesta postagem).
Salvo raríssimas e honrosas exceções, âncoras de telejornais, comentaristas e palpiteiros de plantão trataram o assunto como se fosse o sepultamento das esperanças de sucesso na eficácia da droga contra a Covid-19. Os poucos que tiveram a decência de esclarecer que a suspensão de testes de medicamentos não é incomum, que a paralisação não representava necessariamente um retrocesso e que nenhum dos 5 mil voluntários que se submeteram aos testes no Brasil havia apresentado qualquer reação adversa fizeram-no como que por mero dever de ofício, sem dar o devido destaque — afinal, boas notícias não vendem jornal. Felizmente, minha previsão se confirmou: fez-se carnaval em copo d’água.
No último sábado (12), a AstraZeneca anunciou os testes seriam retomados nesta segunda-feira (14), depois de aprovação dada pela Anvisa. A Universidade de Oxford também anunciou a retomada das aplicações de sua vacina na fase 3 de testes no Reino Unido. após uma revisão independente, feita por um comitê internacional, ter concluído que a "reação adversa apresentada pelo paciente" não teria necessariamente relação com a vacina. Dito isso, vamos adiante.
Diz um velho ditado que o mundo dá muitas voltas; outro, que palavra de rei não volta atrás. Isso não significa que sua majestade não possa mudar de ideia: de acordo com outra pérola da sabedoria popular, pedra que rola não cria limo. O que nos leva ao ex-presidente Fernando Henrique.
Durante o primeiro mandato do pomposo tucano, após uma série de articulações iniciadas em 1995, o "rolo compressor governista" comprovou sua força. Uma PEC aprovada na Câmara por 369 votos a 11 estendeu a reeleição — apenas uma vez para um mandato subsequente e sem restrição para um pleito não consecutivo — a chefes dos Executivos Federal, Estaduais e Municipais (e respectivos vices). Dias após a aprovação da proposta, a Folha revelou que pelo menos quatro deputados haviam recebido R$ 200 mil (cada) em troca do voto favorável à emenda.
A oposição pediu a abertura de uma CPI,
mas Michel Temer, na época presidente da Câmara, e outros nomes
influentes se mobilizaram para barrar a investigação, e o então
“engavetador-geral” Geraldo Brindeiro não deu andamento às
denúncias. Assim, em
13 de maio de 1997 a PEC foi chancelada pelo
Senado. E como quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é burro
ou não tem arte, o grão-tucano se beneficiou dela no pleito de 1998, quando, a
exemplo do que fizera quatro anos antes, derrotou o criminoso de Garanhuns já
no primeiro turno.
Passando de FHC a Jair Messias Bolsonaro, entre inúmeras promessas
de palanque que enfiou em local incerto e não sabido depois de derrotar Luladdad, o presidente de turno desistiu de propor
ao Congresso o fim da reeleição — instituto que, segundo ele, “acabava se
tornando uma espécie de desgraça, pois só era possível mediante “acordos
espúrios que levavam a escândalos de corrupção”.
Nem bem vestiu a faixa, nosso morubixaba mudou o discurso. Alegando que "vinha sendo pressionado", seria candidato (se é para o bem de todos e felicidade geral da nação...), mas condicionou sua disputa à reeleição à aprovação de uma reforma política destinada a reduzir o tamanho da Câmara e Senado. Promessa feita, promessa cumprida, só que pela metade: o número de parlamentares permanece o mesmo, mas o Messias que não miracula só tem olhos para o pleito de 2022.
Então, caríssimo leitor, se você ainda acredita no que diz seu presidente, junte-se à Velhinha de Taubaté e dê um abraço no Coelho da Páscoa, talquei?
Dezoito anos após transferir a faixa presidencial ao molusco lalau de nove dedos (já pensou quanto ele teria roubado se tivesse todos os dez?), FHC concluiu que merda fede — ou por outra, que a reeleição é dos males talvez o mais grave do nosso sistema político.
Em seu “mea-culpa”, o tucano reconheceu ter cometido um “erro histórico” ao patrocinar a emenda constitucional que permitiu a prefeitos, governadores e presidente disputarem a renovação de seus mandatos. Disse ter sido “ingênuo” por acreditar que a partir daí os governantes não fariam “o impossível” para se reeleger.
Ingenuidade — diz Dora Kramer — foi acreditar na inocência do então presidente que fez ele mesmo o “impossível” ao jogar o peso de sua autoridade e prestígio angariado no êxito do combate à inflação para aprovar uma emenda em causa própria. Em assim procedendo, feriu de morte sua majestade em troca de mais quatro anos no Palácio do Planalto.
Vir agora com ato de contrição — prossegue Dora — soa a tentativa de diluir responsabilidade por algo que guarda mais relação com a forma do que com o conteúdo. O defeito não está no instrumento existente em várias democracias, mas no uso que se faz dele. Por exemplo: quando da proposta da emenda, por que não se incluiu a obrigatoriedade de o postulante ao mesmo cargo se afastar por um período determinado antes da eleição?
A Justiça é falha na fiscalização do uso indevido do poder e
os grandes partidos também são tímidos na contestação aos abusos com receio de
firmar jurisprudências que venham a lhes criar empecilhos amanhã ou depois, afirma
a jornalista, e emenda uma frase que diz ter ouvido há décadas de Roberto
Campos: “não é a lei que precisa ser forte, é a carne que não pode ser
fraca”.
No sentido oposto argumentam os defensores da busca de um
atalho legal para que o presidente da Câmara e principalmente o do Senado
possam disputar novo mandato em fevereiro de 2021. Aceitam o óbvio, que a
Constituição veda a reeleição dentro da vigência do mandato do parlamentar, mas
acrescentam, simulando piscadelas retóricas de confiante malandragem: “Aqui
é Brasil”. Onde, portanto, o impossível é possível quando quem parte e
reparte fica sempre com a melhor parte, ainda mais se tiver a faca e o queijo
nas mãos.
Esse tipo de conduta ao qual têm se associado o senador Davi
Alcolumbre por ação e o deputado Rodrigo Maia por omissão reforça o
alegado arrependimento de FHC que serviu de sustentação a várias
manifestações de defensores do fim da reeleição como se, primeiro, os males da
nossa política tivessem surgido em 1997, completando agora tenros 23 anos de
idade, e, segundo, fossem ser resolvidos com a instituição de cinco anos de
mandato sem direito à renovação.
Verdade que aí reside o problema? Seria até em parte, caso
governantes também não fizessem o diabo para eleger sucessores. É perfeitamente
possível conviver com a reeleição desde que não se abuse dela. No caso dos
presidentes da Câmara e do Senado, começando por respeitar ou para com clareza
mudar a Constituição. Mas, para não incorrer em serôdios atos de contrição,
fazendo valer para o futuro, sem legislar em causa própria.