sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O BRASILEIRO ADORA UM PICADEIRO

 

A dicotomia político-ideológica instalada pelo ex-presidiário de Curitiba no tempo em que sua agremiação criminosa disputava a Presidência com os tucanos foi estrumada pelos bolsomínions e transformou Lula, Bolsonaro e a polarização (não necessariamente nessa ordem de apresentação) nos maiores problemas da nação.

Saramago dizia que a cegueira é um problema particular entre as pessoas e os olhos com que nasceram. Mas sempre há quem se esforce para quebrar todos os recordes. Os sectários do "mito" de festim conseguem ser mais estúpidos que os mortadelas e, por mal de nossos pecados, essa caterva vota.  

A incompetência chapada de um eleitorado composto majoritariamente por apedeutas, desinformados e cretinos de quatro costados resultou na ascensão de uma súcia de políticos que não deveriam presidir sequer assembleia em condomínio de periferia. Não espanta, portanto, terem sido guindados para o segundo turno do pleito de 2018 o então presidiário e a reencarnação de Caronte — que fomos obrigados a engolir para evitar a volta da cleptocracia petista.

O Barqueiro de Hades, que vem destruindo dia após dia, tijolo por tijolo, o pouco que restou do Brasil após 13 anos, 4 meses e 12 dias de lulopetismo corrupto, ainda vê motivos para comemorar sua calamitosa passagem pela Presidência. E mais: no discurso que porferiu em Boa Vista (RR), o despirocado falou em "mil anos de gestão". Tudo bem que desgraça pouca é bobagem, mas é preciso ir devagar com o andor que o santo é de barro.

Enquanto Bolsonaro comemorava sabe-se lá o que, a CPI do Genocídio perdia parte dos pontos que havia conquistado no dia anterior com a oitiva de Bruna Morato. A advogada cravou mais um prego no caixão dos gestores da Prevent Senior, mas resta saber se, ao bater no ventilador, esse monumental caminhão de merda não atingirá atingir também os 540 mil conveniados do plano.

Inquirir Luciano Hang foi um erro estratégico primário da CPI, sobretudo porque o relator estava claramente despreparado para extrair do interrogado informações que demonstrassem de forma cabal sua ligação com o gabinete paralelo e o financiamento da disseminação de fake news. Pior: Renan patrocinou, ainda que involuntariamente, um comício de 6 horas em prol da candidatura do depoente ao Senado.

Hang chegou acompanhado de uma “tropa de choque” de senadores governistas e se negou a firmar o compromisso de dizer a verdade durante a sessão. De plano, contestou todas as acusações. Escorregadio como um bagre ensaboado e matreiro como uma raposa, usou a Comissão como veículo para promover suas lojas e desfiou um caudaloso rosário de narrativas que os vídeos exibidos durante a inquirição demonstram claramente ser um amontoado de mentiras. Até aí, nenhuma novidade.

Em uma das gravações, o curandeiro barriga-verde era visto apresentando um “protocolo” composto por hidroxicloroquina e ivermectina e indicava inclusive a dosagem a ser administrada às vítimas. Hang disse que "mal conhecia" Ricardo Barros, mas tomou com ele o desjejum na manhã do depoimento. Também minimizou suas relações com Bolsonaro, embora seja visto de braço dado com o capitão numa reunião em Brasília e na garupa da moto do dito-cujo em motociatas promovidas em Santa Catarina.

O Velho da Havan — que ecoa seu presidente na defesa de remédios comprovadamente ineficazes contra o coronavírus — disse ter autorizado os médicos da Prevent a adotar terapias ineficazes no tratamento de sua mãe, morta em 4 de fevereiro, e que só tomou conhecimento de que a Covid não constava no atestado de óbito de Luciana Hang pela CPI, embora soubesse disso desde abril.

Segundo O Antagonista,  fez o jogo virar a favor dos bolsonaristas e contra a CPI no Twitter — cerca de 465 mil tuítes foram publicados com protagonismo do engajamento à direita. O nome do depoente e a hashtag #Cpidocirco dominaram os trending topics. É a mesma escória do 7 de Setembro, uma minoria barulhenta — e doente — que foi às ruas pisotear 600 mil cadáveres. Hang representa os pequenos comerciantes que queriam manter as lojinhas abertas durante a epidemia, a despeito dos mortos. A cloroquina é isso: um truque para ludibriar os coitados dos brasileiros. O Twitter repercute o bumbo obscurantista, mas afunda ainda mais Bolsonaro e seus comparsas.

Com o nítido objetivo de tumultuar a sessão, Hang exibiu cartazes (que o Omar Aziz mandou recolher), tentou ditar o andamento dos trabalhos e irritou parlamentares independentes e de oposição ao fazer a propaganda da própria empresa. Durante a audiência, dada a persistência da senadora maranhense Eliziane Gama, acabou confirmando que arrecadou dinheiro para a compra e distribuição do chamado “kit Covid”. Ele também admitiu manter contas no exterior e empresas offshore, mas não reconheceu que as utilizou para financiar a propagação de fake news sobre a pandemia. Talvez o resultado fosse outro se o relator se preocupasse menos em tripudiar do depoente e se concentrasse em inquiri-lo.

É fato que Hang doou 200 cilindros de oxigênio para Manaus em janeiro de 2021 — em 27 de janeiro, ele publicou numa rede social o anúncio da doação; no dia seguinte, fez outro post mostrando os primeiros 50 cilindros já na cidade. Por outro lado, é falsa a informação de que os atos antidemocráticos do último dia 7 foram a "maior manifestação da história do Brasil".

Embora não tenha sido feito um balanço nacional, imagens registradas no feriado da Independência indicam que a adesão popular perdeu longe para a dos protestos contra Dilma em 2016. De acordo com um levantamento feito pelo g1, apenas sete estados fizeram uma estimativa de público, com menos de 400 mil manifestantes contabilizados. Em contrapartida, dados da PM dão conta de que a Avenida Paulista foi tomada por cerca de 125 mil palhaços; em 1984, no famoso comício pelas Diretas Já, havia cerca 1,5 milhão de pessoas no Vale do Anhangabaú.

Observação: Levando em conta os dados públicos disponíveis, o maior ato político já registrado nesta banânia ocorreu em março de 2016, quando 3,6 milhões de manifestantes foram às ruas em mais de 300 cidades para pedir o impeachment de Dilma (os organizadores falaram em 6,8 milhões).

Ao contrário do que Hang declarou à CPI, seus funcionários foram coagidos a votar em Bolsonaro. Atendendo a um pedido do Ministério Público do Trabalho — que recebeu 47 notícias de fato na Procuradoria do Trabalho com relatos de coação dos trabalhadores da Havan a votar no candidato do empresário —, a 7ª Vara do Trabalho de Florianópolis proibiu qualquer tipo de pressão para que os colaboradores votassem em determinado candidato.

O TSE também condenou Hang por propaganda irregular em favor de Bolsonaro em 2018. A ação foi ajuizada pela coligação Para Unir o Brasil, do então candidato tucano Geraldo Alckmin, que alegou "propaganda em bem de uso comum" pela publicação de um vídeo, gravado dentro de uma unidade da Havan em Santa Catarina. No vídeo, o Velho da Havan criticou os partidos de esquerda e não só afirmou que talvez não abrisse mais lojas caso seu candidato fosse derrotado como ameaçou fechar as portas e demitir 15 mil funcionários.

Tampouco procede a informação de que "Brusque é a cidade com menor letalidade [por Covid] no país”Dados tabulados pela Universidade Federal de Viçosa com base nas informações oficiais de cada município mostram que há mais de 550 cidades brasileiras com letalidade menor. Em um outro momento do depoimento, Hang fez a mesma afirmação ponderando que "Brusque era líder no ranking das cidades com mais de 100 mil habitantes", mas Santana (AP), Parauapebas (PA) e São Félix do Xingu (PA), por exemplo, têm índices menores. A taxa de letalidade de Brusque, de 1,05%, é menor que a média nacional (2,41%), mas tal cálculo não é o ideal para medir a mortandade, já que a subnotificação e a falta de testagem podem subdimensionar o resultado.

Resumo da ópera: Depois de fornecer a estrutura — apartamento funcional, transporte, psicólogo e todos aqueles assessores — para os senadores se prepararem da melhor maneira, de bancar o aluguel do palco, a iluminação, o som e a TV Senado, a plateia (leia-se nós) assistiu, na última quarta-feira, a mais um espetáculo circense de quinta categoria. Eram favas contadas que o empresário faria as palhaçadas habituais, mas o mínimo que se esperava dos membros da CPI era uma boa frase, um insulto mais sofisticado, uma ironia refinada, uma bala de prata qualquer que compensasse o custo. Na prática, Hang ganhou de presente um comercial hipertrofiado da Havan, com direito à exibição de um vídeo institucional da sua rede de lojas. Tudo financiado pelo déficit público, com reprodução gratuita na GloboNews e na CNN.

Antes de chegar à sala de audiência, Hang chamou Renan Calheiros de corrupto nas redes sociais. Mordendo a isca, o relator insinuou que o depoente é o bobo da corte. Chefe da milícia parlamentar que ofereceu serviço de guarda-costas ao escalvado, o senador das rachadinhas reagiu: "Cinismo". No final, a CPI não conseguiu senão provar que Luciano é mesmo o Hang que todos imaginavam — um sujeito que se veste como papagaio, vive no ombro de Bolsonaro, acha que o isolamento social prejudica os negócios, anuncia em sites de notícias falsas, autoriza a Prevent Senior a enfiar cloroquina na goela da mãe com Covid e dá de ombros para a omissão da doença na certidão de óbito.

Alguns membros da Comissão farejaram a fiasco e tentaram desconvocar o Velho da Havan, mas o relator bateu o pé. Renan não é um adversário de pouca expressão. Trata-se de um peso pesado, ex-presidente do Senado e réu ou investigado em pelo menos 17 ações em trâmite eterno no supremo cemitério de processos. Mas o senador demora a perceber que foi convertido em coadjuvante no picadeiro de um palhaço de ego mais articulado.

O brasileiro adora um picadeiro, mas não suporta fazer papel de palhaço.

Com Fato ou Fake e Josias de Souza