Churchill disse que não há argumento melhor contra a democracia do que cinco minutos de conversa com um eleitor mediano.
Figueiredo — que era um sábio e não sabia — disse que um povo que não sabe escovar os dentes não está preparado para votar.
O escritor português José Saramago, Nobel de Literatura em 1998, escreveu que a cegueira é uma questão pessoal entre as pessoas e os olhos com que nasceram.
Com a cambada que ascendeu ao Congresso graças à cabeça oca e ao dedo podre do eleitor brasileiro, aprendemos que quem parte e reparte e não fica com a a melhor parte é burro ou não tem arte.
Num cenário de terra arrasada, com mais de 600 mil
mortos por Covid, mais de 13 milhões de desempregados, mais de 20 milhões de
brasileiros passando fome, a inflação de volta à casa dos dois dígitos e a
recessão batendo à porta mais uma vez, os nobres congressistas despacham para as
calendas as reformas estruturantes, mantêm trancafiadas na gaveta PECs como as
da prisão em segunda instância e do fim da reeleição e, felizes como pintos no
lixo, derrubam o veto paraguaio do mandatário de fancaria ao fundo
eleitoral de R$ 5,7 bilhões.
Essa vergonha contou com o aval de 317 dos 513 deputados federais, unindo governistas, independentes e oposição. Horas depois, por 52 votos contra 21, os senadores ratificaram a decisão da Câmara. Assim, o fundo de financiamento da campanha, criado em 2017 e que ficou em torno de R$ 2 bi nas eleições de 2018 e 2020, será o maior da história em 2022.
Em julho, quando
o Congresso aprovou o fundão de R$ 5,7 bi, uma reportagem da Folha baseada em
estudo do Movimento Transparência Partidária abrangendo dados de 25 das
principais nações deu conta de que o Brasil seria o
campeão desse tipo de gasto, tanto nominalmente (em dólar), quanto
proporcionalmente a seu PIB.
Bolsonaro, que está em campanha pela reeleição desde
1º de janeiro de 2019 e se
amancebou recentemente com o PL do mensaleiro ex-presidiário Valdemar Costa Neto
será um dos grandes favorecidos pela derrubada de seu veto, visto que o partido
ocupou a 8ª colocação no ranking das siglas que mais receberam dinheiro na
campanha de 2018.
O uso de dinheiro público para financiar campanhas
eleitorais cria divergência entre os grupos de sustentação de Bolsonaro. Para a base ideológica, o capetão deveria sinalizar que é contrário ao fundo, mas o Centrão — coalizão de partidos que passaram a integrar a base do governo após a liberação de cargos e emendas — quer rios de dinheiro para torrar nas próximas eleições.
Para justificar um aumento tão significativo no fundo, a politicalha
argumenta que na eleição de 2022 há um número maior
de candidatos. De fato, com 33 partidos, 23 dos quais com representação no
Congresso, e mais de 80 aguardando registro no TSE, não há dinheiro que
baste nem outra maneira de governar o país que não esse espúrio
presidencialismo de cooptação (que Bolsonaro vituperou durante a
campanha, dizendo que a "velha política do toma-lá-dá-cá" não teria
lugar no seu governo). Mas não vale a pena gastar boa vela com mau defunto explicando
por que não se deve levar em conta o que o "mito" dos despirocados
diz.
"Não tem solução ideal. Nós não temos o
financiamento privado [de campanha]. A gente precisa discutir isso",
disse Arthur Lira, o réu que preside a Câmara e é um dos mandachuvas do
Centrão. Já o pajé da cloroquina, pressionado por sua récua de apoiadores,
chegou a dizer que o valor do fundão era "astronômico". Mas não
demorou para deixar o dito pelo não dito e, pior, afirmou que não vetaria o
valor total para não incorrer em crime
de responsabilidade, mas que barraria o que chamou de
"excesso".
Já perdemos as contas de quantos crimes de responsabilidade Bolsonaro cometeu desde que tomou posse, e só Deus e o diabo sabem
quantos mais serão cometidos até o final de sua funesta gestão, já que o sultão do bananistão conta com a
blindagem de Aras na PGR e de Lira na Câmara (o procurador finge que investiga o presidente, e o réu que manda e desmanda na
Casa do Povo diz que não tem prazo para decidir o que fará com os 141 pedidos
de abertura de processo de impeachment).
O fundão é dinheiro público, até porque o governo não gera recursos.
Quando você compra pão na padaria, abastece o carro no posto ou a despensa no supermercado, você está contribuindo para o fundão. Ademais, se o valor mínimo legal é de R$ 800 milhões, como justificar a elevação da pilhagem a quase R$ 6 bi se falta dinheiro para a
Saúde, para a Educação e para o Auxílio Brasil?
O Congresso tem movido montanhas para conseguir recursos abundantes e livres de fiscalização ou de limites de qualquer natureza para o ano eleitoral. Tudo em nome de um "bem maior", naturalmente. Mas não fala em remanejar despesas e reluta a dar nomes aos bois quando se trata das famigeradas "emendas de relator" — ou do "orçamento secreto", como queiram.
Como que cúmplices da ladroagem institucionalizada, integrantes da mais alta cúpula do Judiciário vem se dedicando em tempo integral a anular, seletivamente, um sem-número de processos — como o que provou a prática de rachadinha no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro e os que condenaram por corrupção Eduardo Cunha e Sérgio Cabral.
De uma hora para outra, suas excelências se deram conta de que as
punições a crimes como desvios de recursos, cobrança de propina ou
enriquecimento ilícito foram todas aplicadas nas instâncias erradas e pelos
juízes errados — mesmo tendo tramitado por anos sem que ninguém tivesse se dado
conta de nada.
Felizes com a virada nos ventos, os mesmos que comemoram a
prescrição dos processos de Lula e a possível aliança com
ex-tucano Geraldo Alckmin se referem aos tucanos Aécio
Neves e José Serra como denunciados por corrupção,
esquecendo-se, mui convenientemente, de que são todos alvo da mesma
investigação.
Nos bastidores das negociações entre os partidos, tudo é possível. Alckmin e Lula são só a face mais visível das conversas que comportam composições de todo tipo — do PT com o PSD de Gilberto Kassab e, se necessário, até com o União Brasil (fusão do DEM com o PSL).
Bolsonaro se amancebou com PL do
mensaleiro e ex-presidiário Valdemar Costa Neto — e disse
estar se sentindo em casa —, enquanto mantém no governo o PP de Ciro
Nogueira e Arthur Lira, a quem não se cansa de bajular.
O grande consenso nacional é que não deve haver limites para ganhar a eleição. A campanha será sangrenta e o funil, estreito. Mas até aí, noves fora o "astronômico fundão", nenhuma novidade.
Em 2013, a
ex-gerentona de araque (de nada saudosa memória) disse que "faria
o diabo" para se reeleger, e repetiu a dose cinco anos
depois, quando afirmou que o
PT faria aliança até com o diabo para combater Bolsonaro (pode faltar
tudo à cria e pupila do ex-presidiário de Curitiba, menos intimidade com o
Tinhoso)
Em 2022, vai-se fingir que o dinheiro do toma-lá-dá-cá com emendas parlamentares é limpo, que os limites para os gastos públicos não estão sendo arrombados, que somente os adversários espalham fake news e que é normal "sentir-se em casa" junto de quem, em outro momento histórico, chamou-se de "corrupto" e "condenado".
A impressão que se tem é a de que o meticuloso trabalho de
destruição institucional levado a cabo pelo "mito" dos despirocados fulminou
também os limites do aceitável. Talvez não haja mesmo outra forma de devolver a
política a um nível minimamente razoável, ou de resgatá-la do domínio do
terraplanismo, mas é triste constatar que, entre tantas coisas que o
bolsonarismo boçal nos tirou, estão o respeito a certos limites e a falta de
vergonha de ser cínico.
E viva o povo brasileiro.