O ex-presidiário cuja foto ilustra esta postagem gosta de dizer que a Justiça lhe devolveu a inocência. Mas o que ele fala não se escreve e tampouco muda o fato de que, ao reconhecer a prescrição de seus crimes no caso do tríplex do Guarujá, a Procuradoria da República no Distrito Federal esclareceu que o STF não emitiu uma sentença absolutória quando anulou as decisões de Moro, do TRF-4 e do STJ.
A rigor que os semideuses togados fizeram (por motivos que agora não vem ao caso discutir) foi simplesmente declarar, com seis anos de atraso, que os processos contra o líder máximo da ORCRIM petista não deveriam ter sido julgados em Curitiba porque envolviam uma roubalheira que não se ateve apenas à Petrobras.
O Supremo lavou o prontuário do petralha-mor sob o argumento de que as culpas atribuídas a ele precisariam ser submetidas a um novo julgamento na Justiça Federal de Brasília. Com isso, a prescrição se tornou tão certa quanto o dia suceder à noite e a noite suceder ao dia.
Ao alvejar a ficha imunda do agora ex-corrupto e candidato a uma terceira passagem pelo Planalto, a Procuradoria esclareceu que o cálculo do tempo de prescrição foi feito com base nas penas impostas pela 5ª Turma do STJ, realçando, nas entrelinhas, que a sentença que levou o deus pai da Petelândia a passar uma temporada na cadeia foi julgada em três instâncias do Judiciário.
Sergio Moro, então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba,
condenou o acusado a 9 anos e 6 meses de cadeia. O TRF-4, sediado em
Porto Alegre, elevou a pena para 12 anos e um mês. Acionado pela defesa de Lula,
o STJ reduziu a sanção a 8 anos, 10 meses e 20 dias. O molusco
eneadáctilo foi socorrido pela idade (ele tem 76 anos), pois o prazo de
prescrição cai pela metade no caso dos septuagenários.
Ao celebrar a confirmação de uma prescrição que eram favas contadas, a defesa do pseudo parteiro do Brasil Maravilha sustentou que o
arquivamento põe fim a um caso "construído artificialmente a partir do
conluio do ex-juiz Sergio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol".
Mas a reforma do tríplex não brotou dos diálogos capturadas nos celulares dos
procuradores.
Um fenômeno curioso perseguiu Lula e a
ex-primeira-dama Marisa Letícia. Bastava que eles se interessassem por
certos imóveis para que a OAS e a Odebrecht — ou ambas —
providenciassem os confortos. Na origem da encrenca, quando ainda não precisava
de advogados, Lula admitiu que era o dono
do tríplex do Guarujá. Em notícia veiculada no dia
7 de dezembro de 2014, o repórter Germano Oliveira informou: a Bancoop (Cooperativa
Habitacional dos Bancários de São Paulo), que deixara cerca de 3 mil pessoas na
mão por causa de fraudes atribuídas ao seu ex-presidente, o petista João
Vaccari Neto, entregou a Lula o tríplex do Guarujá. Com a falência
da cooperativa, a OAS assumiu as obras.
O edifício ficou pronto em dezembro de 2013, mas o
apartamento de Lula recebeu um trato especial. Os três andares, antes ligados apenas por uma escada interna, foram atravessados por um
elevador privativo. O piso ganhou revestimento de porcelanato e a cobertura foi
equipada com uma sauna e um 'espaço gourmet' ao lado da piscina.
Ouvida nessa época, a assessoria de Lula declarou: "O ex-presidente informou que o imóvel, adquirido ainda na planta, e pago em prestações ao longo de anos, consta na sua declaração pública de bens como candidato em 2006." Postulante à reeleição naquele ano, o então presidente de fato informou à Justiça Eleitoral que repassara à Cooperativa o valor R$ 47.695,38 — que não ornava com o preço de um tríplex. Ato contínuo, a assessoria do Redentor dos Miseráveis ajustou a versão sobre a posse do imóvel.
Cinco dias depois de reconhecer a posse do apartamento, sob os efeitos da repercussão negativa da notícia, o Instituto Lula divulgou uma nota sobre o "suposto tríplex de Lula no Guarujá." Primeiro, o texto cuidou de retirar a encrenca dos ombros do petralha. Anotou que foi a mulher, Marisa Letícia, quem "adquiriu, em 2005, uma cota de participação da Bancoop, quitada em 2010, referente a um apartamento". A previsão de entrega era 2007. Em 2009, com as obras ainda inacabadas, os cooperados "decidiram transferir a conclusão do empreendimento à OAS".
O prédio ficou pronto em 2013. Os cooperados puderam optar
entre pedir o dinheiro de volta ou escolher um apartamento. "À época,
dona Marisa não optou por nenhuma destas alternativas", escreveu o
Instituto Lula. "Como este processo está sendo finalizado, ela agora
avalia se optará pelo ressarcimento do montante pago ou pela aquisição de algum
apartamento, caso ainda haja unidades disponíveis." Nessa versão, a famiglia
Lula da Silva estava em cima do muro.
Em 17 de dezembro de 2014, cinco dias depois da nota em que
o Instituto Lula alegou que Marisa Letícia ainda hesitava entre
requerer o dinheiro investido na Bancoop ou escolher um apartamento no
Edifício Solaris, moradores do prédio informaram ao repórter Germano
Oliveira que a mulher de Lula apanhara as chaves do tríplex número
164 A havia mais de seis meses. "Todos pegamos as chaves no dia 5 de
junho, inclusive dona Marisa", disse, por exemplo, Lenir de Almeida
Marques, mulher de Heitor Gushiken, primo do amigo de Lula e
ex-ministro Luiz Gushiken, morto em 2013.
Só em 8 de novembro de 2015 viria à luz a notícia sobre a
decisão da mulher de Lula acerca do apartamento.
Nessa data, o repórter Flávio Ferreira informou que Marisa
desistira do tríplex. Os assessores de Lula esclareceram que ela
acionaria seus advogados para reivindicar a devolução do dinheiro investido no empreendimento. Considerando-se que a OAS havia assumido as obras em 2009, a ex-primeira-dama levou arrastados seis anos para
decidir. Cooperados menos ilustres tiveram de decidir na lata, sob pena de
perder o direito de exercer a opção de compra.
Inquérito conduzido pelo MP-SP,
sem vinculação com a Lava-Jato, revelou indícios de que o tríplex do Guarujá
integrava o patrimônio oculto do casal Lula e Marisa. Eles seriam
os proprietários escondidos atrás da logomarca da OAS. Ouviram-se no mais de dez testemunhas. Uma delas, de nome Armando Dagre Magri, dona da Talento Construtora, contou à Promotoria que a OAS
contratou sua empresa para reformar o tríplex número 164 A.
Magri orçou a obra em R$ 777 mil. Realizou o serviço
entre abril e setembro de 2014. Não esteve com Lula, mas avistou-se com Marisa.
Estava reunido no apartamento com um representante da OAS quando, subitamente,
a mulher do ex-presidente deu as caras, acompanhada de três pessoas. Descobriria
depois que eram o filho Fábio Luís, o Lulinha, um engenheiro da OAS e ninguém
menos que o dono da empreiteira, Léo Pinheiro, condenado posteriormente a 16
anos de cadeia na Lava-Jato. Inspecionaram a reforma, atestaram sua conclusão e
deram a obra por encerrada.
Zelador do prédio na ocasião, José Afonso Pinheiro
relatou ao MP-SP que Lula também inspecionou
as obras do tríplex. Esteve no apartamento, por exemplo, no dia da instalação
do elevador privativo. Contou que a OAS limpava o prédio e o ornamentava
com flores nos dias de visita de Marisa. Uma porteira do edifício disse
à Promotoria ter visto Lula e Marisa juntos no local em fins de
2013.
Tudo isso se passou antes que Sergio Moro se
debruçasse sobre o processo. Ao caso do tríplex somou-se o processo sobre o
sítio de Atibaia. Alegou-se que Marisa Letícia interessou-se pelo
apartamento, mas desistiu. A certa altura, informou-se que Lula cogitou de comprar o sítio. Mas também voltou atrás. Assim como sucedera no tríplex, as melhorias feitas no sítio sugiram do nada. Sem que ninguém solicitasse, duas
das maiores empreiteiras do país se juntaram para providenciar uma cozinha
nova, reformar a sede da propriedade, construir anexos, ampliar o lago,
ornamentá-lo com pedalinhos.
Nesse tipo de enredo, os brasileiros são divididos em duas
categorias: A dos cínicos, que conseguem usufruir graciosamente de propriedades
alheias, e a dos azarados, que não dispõem de amigos tão generosos. Do ponto de
vista processual, num país em que quatro em cada dez presos pobres e pretos
estão atrás das grades sem sentença, a prescrição de crimes confirmados em três
instâncias rima com impunidade, não com inocência.
Com Josias de Souza