terça-feira, 11 de janeiro de 2022

ATÉ QUANDO, CATILINA, ABUSARÁS DA NOSSA PACIÊNCIA? (CONTINUAÇÃO)


A campanha presidencial de 2018 durou pouco mais de sete semanas, mas foi abundante em episódios tão inusitados quanto surpreendentes — tais como o atentado contra a vida do líder das pesquisas e a insistência do PT em viabilizar a candidatura de um criminoso condenado e preso. Nunca antes na história deste país se viu uma disputa tão calcada na desinformação, mas isso não significa que a próxima não possa superá-la com um pé nas costas.

Em algum momento da trilha para o fracasso nas urnas, o presidiário de Curitiba tentou promover uma espécie de evangelização de seus aliados e correligionários comparando-se a Cristo: “Jesus foi condenado à morte sem dizer uma palavra, recém-nascido. E, se o José não corre, ele tinha sido morto. E olhe que não tinha empreiteira naquele tempo, não tinha Lava-Jato”. 

Ecarta divulgada às vésperas do segundo turno por sua equipe de comunicação (nada mais surreal que um presidiário ter “equipe de comunicação”, mas estamos no Brasil, onde nada mais espanta), Lula exortou os partidos de centro-esquerda a se unirem numa “frente democrática” contra a “aventura fascista”. Só que, noves fora a patuleia ignara, que é um caso perdido, pouco gente acreditava nas narrativas em que o PT imputava (e continua imputando) os próprios pecados a seus adversários.

Às vésperas de ir para a prisão, a autoproclamada “alma viva mais honesta do Brasil” se autopromoveu à condição de “ideia”: “Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia misturada com as ideias de vocês. Minhas ideias já estão no ar e ninguém poderá encerrar. Vocês são milhões de Lulas”. Curiosamente, a figura espurca que achou ter ascendido à dimensão divina se tornou o maior cabo eleitoral do misólogo despirocado que o derrotaria nas urnas dali a seis meses.

Não sei se o picareta dos picaretas achava mesmo que disputaria o pleito ou se tudo não passou de estratégia para impulsionar a transferência de votos para seu poste-bonifrate, mas o fato é que, ao final de uma disputa sui generis — que começou com mais de 20 pré-candidatos e terminou com 13 postulantes — o mui esclarecido eleitorado escalou para o segundo turno os dois extremistas mais extremados do espectro político-ideológico e a patética marionete do ex-presidente presidiário foi derrotada em 16 estados, em 23 das 26 capitais, e no Distrito Federal.

Pela primeira vez desde a redemocratização, um candidato claramente de direita foi ungido presidente (com 57,5 milhões de votos, ou seja, com uma vantagem de 10,8 milhões de votos em relação a seu adversário). Agora, por uma ironia do destino, as posições se inverteram, e o intrujão psicopata, que continua agarrado ao cargo como um náufrago a um tronco, é que contribui diuturnamente para eleger o adversário que ele derrotou em 2018.

Vale relembrar que, quando os resultados do primeiro turno foram divulgados, veículos normalmente divergentes entre si — como The Guardian e The Economist — foram unânimes em ressaltar “perigos severos à democracia”. A palavra “fascista” apareceu em publicações como Der Spiegel, e mesmo o Financial Times, que tem a melhor cobertura do Brasil na grande imprensa internacional, disse ver na figura de Bolsonaro um “prenúncio de tempos duros”.

Infelizmente, o tempo demonstraria que eles estavam certos, mas a questão é que não restou aos cidadãos de bem, no segundo turno, outra opção que não votar no candidato que parecia “menos ruim”. Para piorar (e nada nunca é tão ruim que não possa piorar), todas as pesquisas de intenção indicam que os brasileiros não aprenderam a lição.

A exemplo de Bolsonaro, Lula e o PT são como o escorpião da fábula. O cinismo da campanha de Haddad exibiu as vísceras de um partido que sempre agiu de forma antidemocrática e vocacionada ao crime, e que, mesmo desmascarado, insistiu no erro e expôs ao constrangimento sua militância e seus eleitores (os que ainda guardavam um mínimo de dignidade). Já o dublê de mau militar e parlamentar medíocre nunca foi a solução para os problemas do Brasil.

Em 27 anos como deputado federal, Bolsonaro apresentou 172 projetos, relatou 73, aprovou dois e colecionou mais de trinta ações criminais. No plenário, estava sempre sozinho ou na companhia do filho. Nunca foi visto jantando no Piantella nem tomando uísque no Churchill (onde os parlamentares mais enturmados costumam confraternizar), nunca passou de um parlamentar do baixo-clero, adepto das práticas da mais baixa política, metido com milicianos, mas sem uma turma para chamar de sua.

Em meados de 2014, então filiado ao fisiológico PP — cuja bancada de 40 deputados era adestrada para apoiar qualquer um com chance de vencer —, Bolsonaro se ofereceu para concorrer ao Planalto. Foi solenemente ignorado. No convenção partidária, lançou o ultimato: “Ou o PP sai da latrina ou afunda de vez”. Graças à Lava-Jato (que Bolsonaro se encarregaria de sepultar dali a seis anos, alegando que “o governo não tem mais corrupção”), o PP afundou de vez. Graças a sua pregação antipetista, o “mito” dos apalermados disputou a reeleição e foi o deputado mais votado do Rio de Janeiro (saltando de 120,6 mil votos em 2010 para 464,5 mil em 2014).

No fim de 2014, já no sétimo mandato consecutivo, Bolsonaro percorreu o país, realizou carreatas, estampou camisetas e adesivos, posou para “selfies” com eleitores e proferiu palestras. Ganhou um público jovem e ligado nas redes sociais, que o apelidou de  “mito” e distribuiu memes com frases do político. Ao se dar conta do enorme potencial das redes, o oportunista pavimentou o caminho para a popularidade com frases chocantes, inusitadas ou abertamente provocativas. Cada discurso que embutia uma ideia polêmica ou preconceituosa corria a internet, gerando milhares de comentários.

Situações desesperadoras requerem medidas desesperadas. Ainda que as promessas de campanha do abantesma do PSL fedessem a estelionato eleitoral, poucos imaginavam que elegê-lo seria como abrir a mitológica Caixa de Pandora ou libertar um efrite da garrafa.

Continua no próximo capítulo...