sexta-feira, 11 de março de 2022

DEPOIS DAS MOTOCIATAS, A JEGUIATA

 

Bolsonaro afirmou recentemente que "não vê a hora de “um dia” entregar o mandato presidencial para poder ir à praia, tomar caldo de cana e pescar". Se for por falta de adeus, não se acanhe. E, quanto antes, melhor. Esperemos apenas que o mandato não seja entregue ao ex-presidiário "ex-corrupto". Desgraça pouca é bobagem, mas tudo tem limite.

Depois de se referir a nordestinos como “paus de arara”, nosso indômito capetão foi ao Nordeste fazer campanha. Em lá chegando, referiu-se a um nordestino como “cabeça chata”, espinafrou Fernando Henrique, xingou Lula e falou de si mesmo sem parar, mas apenas para enaltecer o fato de que, segundo ele, “estamos há três anos sem corrupção”. 

Trata-se de uma afirmação no mínimo curiosa, já que veio de alguém que é alvo de 6 inquéritos, apontado como autor de 9 crimes pela CPI do Genocídio e pai de quatro filhos investigados pela Polícia Federal (instituição cujo comando ele já trocou quatro vezes).

Observação: Apesar de ser alvo de uma lista considerável de inquéritos, Bolsonaro pode seguir tranquilo em sua caminhada pré-eleitoral. A coisa segue fria para ele na PGR. Ainda não há, na procuradoria, indicativo de que o presidente vá ser denunciado ao STF nos casos investigados por Alexandre de Moraes. Investigadores da PGR dizem que ainda não receberam da Polícia Federal ou de Moraes elementos que sustentem qualquer ação contra o presidente. As provas colhidas em diligências ainda em curso estão no STF ou em poder dos delegados

Animado com a possibilidade de “enganar os trouxas”, o supremo devoto da cloroquina partiu rumo à caatinga para se aboletar nos currais dos votos de cabresto e expor sua decantada “habilidade populista” — o caradurismo de sempre inaugurando (pela enésima vez) obras jamais concluídas e prometendo mundos e fundos que não vão ser entregues porque nada há a ser oferecido. Mas, nos cânticos de louvação bolsonarista, a mentira é parte essencial da homilia para converter a ospália travestida de seguidores do “mito”. 

O capetão monta encenações folclóricas (e nossas velhas conhecidas) para parecer um homem do povo. Depois da farofada, bolou o que chamou de “jeguiata” (passeio de “jegue” em grupo), na qual planejava gastar até R$ 200 mil — o que é “dinheiro de pinga” se comparado com o que foi gasto (quase R$ 1 milhão) para bancar a semana de férias que ele se autoconcedeu no final do ano. Com esse "trocado", sua alteza irreal arregimentou mais de 200 cabeças dos burricos em uma caravana profética a repetir, de modo mais pobretão, as “motociatas” encenadas no Sul maravilha (que custaram muito mais).

Para os “cabeçudos”, a jeguiata está de bom tamanho. Os nortistas e nordestinos não precisam de mais, pois não passam de um bando de “paus de arara, aratacas”, como seu presidente os classifica. Segundo o mandatário, a fatia de habitantes lá de cima do mapa do “Brasilsão Grande” é um “bando de pés-rapados” que serve apenas de massa de manobra em sua busca pela reeleição.

O cala boca por um ano do Auxílio Emergencial generoso, com data para acabar, será suficiente, na opinião do mandatário, para convencer os nordestinos de que seu presidente é bonzinho, generoso, preocupado. Uma vez alcançado esse objetivo, ele pode voltar ao funk em lanchas e aos passeios de jet-ski e regressar ali somente quatro anos depois, para renovar apoios. Os "paraíbas" não terão serventia no interregno de eventual novo mandato. Mas eis que o imprevisto lhe atropela os planos. 

Na solene cerimônia de inauguração — pela milionésima vez entre presidentes nos últimos tempos — da esperada e tão desejada obra (retalhada em pedaços!) da Transposição do Rio São Francisco, Bolsonaro se deparou com o inconveniente. Estava tudo indo muito bem — com direito a chapéu estilo coco e prosa larga, dentro do script — até que o prefeito do município pernambucano de Salgueiro, onde ocorria o furdunço com os rapapés de estilo, resolveu fazer uma cobrança elementar: “Está faltando água, presidente, quando isso acaba?”

Esse pessoal nunca está contente, não é mesmo? O reizinho desce do trono e desabala até aquele fim de mundo, corta fita inaugural, discursa e tudo, e o sujeito ainda pede água? Como ousa levantar questiúnculas como essa e chatear o mandatário-candidato que está ali para ser visto como um Deus, o enviado da salvação dos pobres e oprimidos?

A “jeguiata” emulou o regresso triunfal de Cristo a Jerusalém, montado em um jumento e saudado pelos transeuntes com ramos de palmeiras nas mãos — no episódio que ficou popularmente conhecido como “Domingo de Ramos”. O detalhe (e o diabo mora nos detalhes) é que Bolsonaro não pretendia gastar um minuto sequer de seu dia de descanso com “cabeças-chatas” (outra das alcunhas a qual ele recorreu na ocasião). 

Tal qual nas escrituras, o Messias do Planalto desejava ser o arauto da boa nova. Mas de qual boa nova ele estaria falando? A do aumento da fome e da miséria? Do recorde de desemprego, da inflação ou dos juros? Vendilhões do Templo! Não profanem a fé irrestrita e irrefreável dos seguidores nem a palavra da redenção. O profeta ungido estava ali. O Messias encarnado que, por divindade e direito, pode atribuir a seus filhos de religião a alcunha que bem desejar. Que venham a ele os paus de arara, cabeças-chatas, aratacas cabeçudos, desvalidos na condição e fisionomia, porque deles é o reino da reeleição. Contemplem o salvador de araque, malfeitor dos vulneráveis. E concedam a ele a prova de sua devoção.

Bolsonaro menospreza a inteligência desses “cabras-da-peste”. Ignora suas agruras e relativiza o senso de justiça apurado que a vida miserável lhes impôs. Nessa toada, o estadista de fancaria pode levar de contragolpe uma sova fragorosa. O nordestino está curtido nas áridas promessas dos aventureiros ocasionais. Basta ver a lapada de votos que no passado tirou de alguns descuidados pretendentes.

Desprezar a sutil percepção da boa escolha por parte dessa gente é flertar, invariavelmente, com a derrota. O tucano Aécio Neves que o diga. Mal apareceu para alguns poucos dedos de prosa e deixou o poste adversário — a herdeira do então futuro presidiário de Curitiba — carregar em média 80% dos votos da região enquanto colhia migalhas residuais de 3% a 6% naqueles estados.

Bolsonaro parece disposto a trilhar o mesmíssimo caminho. Não tem o menor traquejo para disfarçar sua repulsa latente e óbvia. Não se emenda. Acredita que é tudo farinha do mesmo saco. Basta um agrado aqui, outro acolá, para calar a boca de carências seculares desse povo que, de bucho cheio, vira um bando de cordeirinhos e, acha ele, comem da sua mão. O estilo odioso de alguém que imaginou cancelar o luto oficial do lendário Padre Cícero — e ainda confundiu sua origem como sendo “lá de Pernambuco”, talvez por nunca ter visitado Crato, no Ceará, mas, mais provavelmente, por pura ignorância — é típico da visão tosca que guarda de uma gente tão sofrida.

Com Carlos José Marques