terça-feira, 5 de abril de 2022

INTERFERÊNCIA, EU?

Depois de tudo que Bolsonaro falou na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, nem a Velhinha de Taubaté acreditaria quando ele diz que não interferiu “politicamente” na Polícia Federal. Não interferiu uma, mas diversas vezes — na maioria delas para proteger sua prole (quatro dos seus cinco filhos são alvo de investigações, a exemplo do pai, que responde a pelo menos meia dúzia de inquéritos). Mas a PF parece ser mais crédula do que a finada velhinha: a conclusão da investigação foi a de que o presidente não cometeu crime por interferências na instituição.

O Brasil se tornou um país surpreendente porque nada mais surpreende de verdade. A conclusão estapafúrdia da PF nem se compara à teratológica decisão suprema que avalizou o delírio fachiniano segundo o qual a 13ª Vara Federal de Curitiba não era competente para julgar Lula e, por 8 votos a 3, anulou tanto as condenações quanto as provas referentes a quatro processos — dois dos quais tiveram sentenças condenatórias ratificadas pelo TRF-4 e pelo STJ.

Bolsonaro coleciona interferências em órgãos e outras áreas ligadas ao governo como os filatelistas colecionam selos. Quando questionado, reafirma sua autoridade com um “quem manda sou eu” — “e eu quero o Ramagem lá”, como afirmou a jornalistas, referindo-se à ordem para que a AGU recorresse da decisão do Supremo que vetou a nomeação de Alexandre Ramagem. Também deixou claro o poder de sua caneta em fevereiro do ano passado, quando substituiu Castello Branco por Silva e Luna, na presidência da Petrobras, suscitando comparações com os governos petistas. "Não adianta a imprensa falar que eu intervi [sic]. Estão na mesma linha da questão da Polícia Federal, que eles não acharam nada de interferência minha no tocante à PF", disse ele em uma rede social no sábado.

Em 2019, Bolsonaro defendeu publicamente que a petrolífera rompesse contratos com o escritório de advocacia de Felipe Santa Cruz — então presidente da OAB e desafeto do capitão. Naquele mesmo ano, o mandatário que “não interferiu na PF”, segundo a própria PF, avançou sobre decisões internas do órgão ao anunciar a substituição do então superintendente da PF no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi — na época, a PF divulgou nota afirmando que Saadi seria substituído por Carlos Henrique Oliveira, mas Bolsonaro disse ter acertado previamente que o cargo seria ocupado pelo superintendente no estado do Amazonas, Alexandre Silva Saraiva.

Bolsonaro ignorou a lista tríplice do MPF por duas vezes ao indicar Augusto Aras para o comando da PGR. A condução do processo foi chamada de retrocesso e criticada por sugerir risco à autonomia do Ministério Público. Aras já abriu diversas apurações para investigar supostos ilícitos de seu suserano, mas sempre a contragosto e nunca encontrado nada que desabone o chefe, a despeito de as evidências saltarem diante de seu nariz.

Bolsonaro bancou a eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara para ter um aliado no comando da Casa e, de quebra, um cão de guarda para os mais de 140 pedidos de impeachment protocolados em seu desfavor. Para tanto, prometeu cargos a congressistas e acenou com a liberação de recursos de emendas parlamentares e ofereceu até a recriação de ministérios para acomodar indicados do Centrão. Chegou mesmo a admitir a intervenção: “Vamos, se Deus quiser, participar, influir na presidência da Câmara, com estes parlamentares, de modo que possamos ter um relacionamento pacífico e produtivo para o nosso Brasil”.

Bolsonaro determinou a demissão de André Brandão da presidência do Banco do Brasil. Foi convencido a recuar pelo ministro da Fazenda e pelo presidente do Banco Central, mas recuou do recuo menos de dois meses depois — afinal, quem tem a caneta pode mais, e quem pode mais chora menos. Em outro episódio envolvendo o BB, o "mito" mandou tirar do ar uma campanha publicitária do banco com atores que representavam a diversidade racial e sexual: “A linha mudou. A massa quer o quê? Respeito à família. Ninguém quer perseguir minoria nenhuma, nós não queremos que dinheiro público seja usado dessa maneira”. O Planalto chegou a determinar que estatais deveriam submeter previamente à avaliação da Secretaria de Comunicação Social campanhas de natureza mercadológica, mas depois acabou recuando.

Bolsonaro anunciou ter implodido o Inmetro com a substituição da então presidente do órgão por um militar do Exército. As exonerações na autarquia, vinculada ao Ministério da Economia, foram decididas porque o mandatário não gostou das mudanças que envolveriam tacógrafos e provocaram reclamações de motoristas e taxistas.

Em diferentes momentos, Bolsonaro requisitou a AGU para tarefas que podem ser consideradas uma extrapolação do escopo institucional do órgão. Entre outras, acionou a AGU para tomar providências sobre a reclamação de que seguidores não estariam conseguindo postar fotos na página do presidente no Facebook. Em 2020, desautorizou a AGU no episódio da posse do delegado Alexandre Ramagem no comando da PF, barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, mandando o órgão recorrer da decisão do magistrado depois de a AGU publicar nota informando que não contestaria o ato do STF.

Bolsonaro mobilizou o Ministério da Justiça para impetrar um pedido de habeas corpus em favor do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, intimado pelo STF  explicar os ataques feitos à Corte. A petição, assinada pelo então ministro da Justiça, André Mendonça — que foi guindado ao STF com as bênçãos do capitão, foi considerada inapropriada, já que a tarefa caberia à AGU ou a um advogado pessoal. Membros do governo disseram que enviar um documento com a assinatura de Mendonça foi uma maneira de dar um caráter político, e não técnico, à manifestação, em um momento no qual o Executivo estava em atrito com o Judiciário.

Durante a gestão do ex-juiz Sergio Moro, um dos primeiros focos de tensão do então ministro da Justiça e o presidente se deveu à nomeação de Ilona Szabó como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Moro teve que recuar da escolha após campanha de bolsonaristas nas redes sociais. Os aloprados lembraram que, além de divergir do capitão em temas como armamento e política de drogas, Szabó havia se posicionado contra ele durante a campanha eleitoral de 2018. Bolsonaro confirmou publicamente, e em duas ocasiões, ter pressionado o ministro pela suspensão da nomeação, afirmando que ela possuía posicionamentos incompatíveis com o governo. E disse ainda que “não foi fácil conseguir a saída por causa da resistência de Moro”.

Observação: Nunca é demais lembrar que o presidente "acabou com a Lava-Jato porque não tem mais corrupção no governo" e que disse isso dias depois de seu líder no Senado ser flagrado, pela PF, com R$ 30 mil escondidos entre as nádegas!

Bolsonaro exonerou o presidente do Inpe depois que ele divulgou dados sobre o desmatamento da Amazônia que desmentiam a falaciosa posição do governo — o capitão queria que as informações fossem discutidas previamente com o Palácio do Planalto antes de serem tornadas públicas. Dois dias após a exoneração, Bolsonaro indicou em entrevista ter ordenado ao ministro da Ciência e Tecnologia a exoneração do subordinado. “Está a cargo do ministro. Eu não peço, certas coisas eu mando”, afirmou o presidente.

Os sinais de interferência do Planalto na Receita Federal, sobretudo na unidade do Rio de Janeiro, começaram no primeiro ano do governo. As pressões se referiam principalmente à troca de servidores em postos de comando do órgão. Em meio a apurações que atingem autoridades e também familiares e pessoas próximas a Bolsonaro, um subsecretário-geral do posto fluminense chegou a ser substituído pelo governo, em 2019, por se posicionar de forma contrária às intervenções. Questionado na época sobre as ingerências na Receita e na PF, o mandatário afirmou: “Fui eleito presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidência, tô fora”.

Bolsonaro continua presidente e, pior, candidatíssimo à reeleição. Como se não bastasse, tudo indica que, para nos livrarmos dele, teremos de amargar o retorno da cleptocracia lulopetista. Triste Brasil!

Texto baseado em informações publicadas pela Folha