Em meio a discussões acaloradas, os membros da CPI da
Covid aprovaram a convocação
de nove governadores de Estados em que houve operações da PF
para apurar possíveis irregularidades no uso de recursos federais no
enfrentamento da pandemia. Senadores bolsonaristas queriam convocar o
governador João Doria, desafeto do capitão-negação, mas até o final da tarde de ontem o requerimento
(de autoria do senador Marcos Rogério) não havia sido aprovado.
Serão ouvidos Eduardo Pazuello
e Marcelo Queiroga (ex-ministro da Saúde e atual
titular da pasta, respectivamente), Filipe Martins (assessor de assuntos internacionais
da Presidência), Arthur Weintraub (ex-assessor especial da Presidência),
Luana Araújo (ex-secretária de enfrentamento à Covid), Marquinhos
Show (ex-diretor de comunicações) e Aírton Cascavel (ex-assessor
especial do ministério da Saúde) deverão ser ouvidos pelo colegiado, ainda sem
data marcada para as respectivas oitivas. O empresário Carlos Wizard, apontado como “consultor voluntário” de Pazuello, e Paulo
Baraúna, diretor da empresa White Martins, também deverão ser
ouvidos.
Minutos após o início dos trabalhos, o presidente da CPI
se reuniu a portas fechadas com os demais membros para costurar um acordo sobre
os pedidos de informação, convites e convocações que seriam votados. Alegando “participação
direta ou indireta nos graves fatos questionados pela CPI”, o
vice-presidente da Comissão, Randolfe Rodrigues, pediu
a convocação de Jair Bolsonaro. “Os critérios e vedações são os
mesmos que se encaixam em relação aos governadores; então eu queria pedir para
a inclusão deste requerimento com os demais que vão ser apreciados”,
argumentou o senador.
Embora a Constituição não proíba expressamente, a convocação
do chefe do Executivo Federal por uma CPI pode caracterizar interferência entre
Poderes. O requerimento de Randolfe segue pendente de apreciação, já que
um acordo firmado em reunião anterior estabeleceu que fossem votados apenas
pedidos apresentados com antecedência de pelo menos 48 horas — ou que fossem objeto
de consenso entre os parlamentares.
Na sessão de hoje, deverá ser ouvido o diretor do Instituto
Butantan, Dimas Covas — em seu primeiro dia de depoimento à CPI,
o general Pazuello negou ter recebido ordens de Bolsonaro para não
adquirir a CoronaVac, embora tenha sido desautorizado publicamente pelo
capitão, que determinou
o cancelamento da compra de 46 milhões de doses da “vachina do Doria”.
Foi justamente esse “incidente” que levou o ex-ministro a dizer que a
coisa era “simples
assim: um manda e o outro obedece”. Questionado sobre essa frase
pelos senadores, Pazuello disse que foi “coisa
de Internet” e voltou negar que o presidente lhe ordenou desfazer
qualquer contrato.
***
Quando um general da ativa participa de um comício,
ignorando o Estatuto Militar e o Regulamento Disciplinar do Exército,
fica evidente que o Estado tem um problema. Esse problema tem nome e sobrenome.
Muitos o chamam de Eduardo Pazuello. Se estivessem certos, a solução
seria simples. Bastaria o comandante do Exército, general Paulo Sérgio
Nogueira, divulgar uma nota oficial para distanciar os quarteis da política
e informar que a transgressão não ficaria sem uma resposta adequada.
Após ouvir os membros do Alto Comando do Exército, o
comandante abriu procedimento disciplinar contra Pazuello. Pretendia
divulgar uma manifestação escrita sobre a participação do general no comício do
último domingo. Chegou a se entender com o ministro da Defesa, o também general
Braga Netto. De repente, deu meia-volta: a estrela do comício que
transformou Pazuello num transgressor vetou a divulgação da nota,
impondo o silêncio ao Exército. Ficou no ar uma dúvida sobre a autonomia do
Exército para impor uma punição adequada a Pazuello — que vai de mera
advertência à suspensão, da prisão por até 30 dias à passagem compulsória para
a reserva.
O vice-presidente Hamilton Mourão entendeu
rapidamente a natureza do problema. Na segunda-feira, declarou que Pazuello
sabia que cometera um “erro” e tinha “colocado a cabeça no cutelo”.
Mourão sabe como essas coisas funcionam. Em 2014, quando comandava a
prestigiosa tropa do Sul, meteu-se numa polêmica política. Perdeu o comando,
mas resignou-se: “Andei extrapolando o tamanho da minha cadeira”, disse
ele na época. “E a autoridade do comandante não pode deixar de ser exercida.”
Bolsonaro também não desconhece esse tipo de
problema. O hoje (ainda) presidente da República cursou a AMAN e serviu nos grupos
de artilharia de campanha e paraquedismo. De cadete a capitão, passou14 dos
seus 66 anos de vida no quartel. Mas jamais respeitou os valores militares que
vive enaltecendo da boca para fora.
Em 1986, aos 31 anos de idade, o então oficial da
ativa publicou um artigo na revista VEJA em que
reclamava do soldo. A matéria lhe rendeu 15 dias de prisão disciplinar. No ano
seguinte, deixou clara sua vocação para subversivo ao planejar explodir bombas de
baixa potência em quartéis e academias (também como forma de protesto contra os
baixos salários dos militares). Outro
artigo publicado por Veja revelou o plano do insurreto, que foi
excluído do quadro da Escola de Oficiais, mas acabou absolvido
das acusações pelo Superior Tribunal Militar. Mesmo assim,
sua carreira no Exército terminou ali.
No mesmo ano em que deu baixa (1988), o capitão reformado se elegeu
vereador. Dois anos depois, foi um dos deputados federais mais votados no Rio
de Janeiro. Ao longo de sete mandatos como deputado do baixo clero,
aprovou dois míseros projetos, mas colecionou dezenas de processos (a maioria
deles movidos por parlamentares de esquerda). Na presidência, inaugurou
um governo civil em que ninguém sabe o nome do ministro da Educação. Mas todos
conhecem os nomes dos generais. Há o Mourão, o Heleno, o Braga
Netto, o Ramos...
Bolsonaro tornou a deixar patente seu desprezo pelos
valores militares no último domingo, quando levou para o alto de um carro de
som um general da ativa, em meio de uma manifestação política. Pazuello podia
ter se recusado a participar da passeata em vez de pisotear suas insígnias. Mas
Bolsonaro, como militar e como presidente, foi coautor desse gesto de
desprezo pelas Forças Armadas.
O processo militar aberto para apurar a conduta de Pazuello
não levará menos de 30 dias, durante os quais ele terá oportunidade de se
defender. Nem imagino que argumentos usará para explicar o inexplicável, mas o
que mais interessa saber se sua eventual aposentadoria compulsória seria uma
punição ou uma oportunidade. Quem assistiu a seus depoimentos na CPI do
Genocídio — foram duas sessões repletas de mentiras para proteger o
presidente — não tem por que estranhar aparição do general no trio elétrico do
capitão, onde foi apresentado como “o gordo do bem”.
Ao que tudo indica, ocorreu uma troca de lealdades — da
família militar para a família do bolsonarismo. E há indícios de que Pazuello
foi picado pela mosca azul: seu nome vem sendo cotado para uma candidatura ao Parlamento
(o ex-ministro nega, naturalmente, mas nem Velhinha de Taubaté (*) acreditaria
no que ele diz). Se passar mesmo para a reserva, talvez ele pense carinhosamente
nessa possibilidade. Afinal, o exemplo mais bem sucedido de migração da caserna
para a política está bem a seu lado.
Talvez a reserva não seja um castigo assim tão grande
para o general, que já se comporta se comporta como político em ano
pré-eleitoral. Militar de pijama em cargo civil pode ser visto como solução.
General da ativa na política produz anarquia. E o país precisa de outras coisas
— vacinas, empregos e serenidade, por exemplo.
(*) Para quem não sabe ou não se lembra, a
Velhinha de Taubaté é uma personagem caricata criada por Luis Fernando
Veríssimo durante a gestão do general João Batista Figueiredo
(1979-1985), o último presidente militar da ditadura. Famosa por ser a
última pessoa no Brasil que acreditava no governo, ela “faleceu” em
novembro de 2005, aos 90 anos, decepcionada o cenário político tupiniquim, em
especial com o seu ídolo, Antonio Palocci.
Com Josias de Souza