Depois que Jair Bolsonaro desistiu de participar das manifestações
que articulou com a mão do gato, o assunto meio que esfriou. O acordo entre o
Planalto e a Câmara para a aprovação da medida provisória que reduziu o número
de ministérios também botou água na fervura, a despeito de Rodrigo Maia e o líder do governo na Câmara terem ficado de mal. É
curioso que fatos dessa natureza — que em outras circunstâncias não mereceriam sequer meia
dúzia de linhas no jornal — assumam tamanhas proporções, derrubem o Ibovespa e
façam a cotação do dólar disparar. Mas é o retrato do país em que vivemos; não
há o que fazer senão esperar que seja uma fase passageira e que tudo volte ao
normal em breve.
O folhetim Flávio
Bolsonaro/Fabrício Queiroz também ganhou novas nuances em seus novos
capítulos, notadamente após a autorização da quebra do sigilo bancário
dos envolvidos. O filho do pai, que nega ter culpa nesse cartório, mostra-se
inconformado com a investigação — o que é causa espécie, considerando que ela é
fundamental para afastar quaisquer suspeitas de ilicitudes, como a prática da rachadinha em seu gabinete na Alerj e sua evolução patrimonial
incompatível com seus proventos de parlamentar e sócio de uma lojinha de
chocolates. Supondo que as investigações apontem Queiroz como o único responsável pelos malfeitos, tornar-se-á
verossímil a alegação de que o erro de Flávio foi
ter confiado demais no ex-auxiliar. Se nada existe que o desabone, ele
deveria incentivar a devassa nas suas movimentações financeiras — quanto mais
ampla, rigorosa e transparente ela for, mais convincentes serão seus resultados.
Segundo Ricardo
Noblat, zero um anda uma pilha de nervos — o que é compreensível: para
qualquer cidadão, mesmo que inocente, ser investigado é uma aporrinhação. Mas
confrontar a Justiça certamente não é a melhor estratégia. Aliás, esse foi o
maior erro cometido por Lula desde
que seus rolos foram denunciados, e parece que o filho do capitão parece decidido
a seguir o mesmo caminho trilhado pelo petralha.
Condenado em duas das oito ou nove ações criminais em que
figura como réu — numa delas por oito juízes de três instâncias do Judiciário —,
o sacripanta de Garanhuns segue preso em Curitiba, de onde comanda uma
agremiação criminosa que chama de partido e, de uns tempos a esta parte,
concede entrevistas a torto e a direito. Nem o próprio PT aguenta mais tanta parlapatice. Gente que cuida da comunicação no
partido acha que é hora de Lula
silenciar, sobretudo no que tange ao Judiciário
e ao governo Bolsonaro.
Observação: Michel Temer também protestou
inocência quando Lauro Jardim trouxe
a lume sua conversa de alcova com o moedor de carne bilionário dono da JBS, disse que “o inquérito no STF seria o território onde surgiriam todas as
explicações”, e que seria feita “uma
investigação plena e muito rápida para os esclarecimentos ao povo brasileiro”.
Ato contínuo, fez o diabo para barrar as investigações e penhorou até as cuecas
(as nossas cuecas) para comprar votos das marafonas do Congresso. Isso impediu
que ele fosse afastado, mas não de, cinco meses depois de transferir da faixa
para o presidente do turno, tornar-se réu em seis processos e ser preso
preventivamente em duas oportunidades (até agora). A diferença é que Lula tem
um partido que o defende e algum apoio popular (menos do que imaginou, mas tem),
ao passo que Michel Temer não
tem ninguém que levante a voz para defendê-lo, a não ser seus (bem pagos)
advogados.
Voltando a Flávio
Bolsonaro, antes da quebra do seu sigilo, ele tentou por duas vezes barrar
a investigação do Ministério Público alegando que ter privilegiado porque se
elegeu senador. Não funcionou. Agora, tenta se esconder à sombra do pai ao
afirmar que o verdadeiro alvo da Justiça não é ele, mas sim o presidente. É uma
jogada primária que, além de falta de imaginação, denota fraqueza, embute um
pedido de socorro à instância invocada e acarreta descrédito. Embora tenha afirmado
ao filho que não o protegerá, o presidente costuma dizer que filho é filho,
coisa de sangue, e que jamais conseguirão separá-los deles. Com tal
comportamento, ele se arrisca a afundar seu governo — como se não bastasse tudo
o mais que ele vem fazendo nesse sentido, a pretexto de testar seus limites,
como no incitamento às manifestações convocadas por seus apoiadores, que, mesmo
sob o manto da democracia e da liberdade de expressão, é mais condizente com
ditadores que precisam mostrar força popular — como Nicolas Maduro na Venezuela. Mas parece ser da natureza do
presidente esticar a corda e soltá-la quando sente que ela vai arrebentar, como
comprovam suas constantes “idas e vindas” em relação a medidas polêmicas, rejeitadas
pela opinião pública ou por líderes políticos (veja-se o recuo
no decreto de liberação do porte de armas).
Nas visão de Merval Pereira, um presidente democraticamente eleito há cerca de cinco meses não precisa insuflar manifestações de apoio popular, a não ser que se sinta desconfortável com as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. Daí a mobilização da militância ser contra o Congresso, o Judiciário e a Imprensa — justamente as instituições que têm como finalidade precípua impedir que o Executivo exorbite de seus poderes, sobretudo num regime presidencialista que dá preponderância quase imperial ao presidente da República.
Nas visão de Merval Pereira, um presidente democraticamente eleito há cerca de cinco meses não precisa insuflar manifestações de apoio popular, a não ser que se sinta desconfortável com as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. Daí a mobilização da militância ser contra o Congresso, o Judiciário e a Imprensa — justamente as instituições que têm como finalidade precípua impedir que o Executivo exorbite de seus poderes, sobretudo num regime presidencialista que dá preponderância quase imperial ao presidente da República.
Como macaco velho não mete a mão em cumbuca, Bolsonaro, apesar de avalizar
publicamente os protestos, desistiu de participar pessoalmente e orientou seus ministros
a fazerem o mesmo, retirando o comprometedor “ar oficialesco” da convocação.
Desde o início, aliás, ele deveria ter se apartado de movimentos que querem
emparedar os demais poderes do Estado. É certo que sua eleição deveu-se em
grande medida a um nicho que se prepara para sair às ruas em sua suposta
defesa, como se ele estivesse sendo submetido a “forças terríveis” — quiçá as
mesmas que levaram à renúncia de Jânio, que a exemplo do capitão era um líder populista e não se
enquadrava nas limitações que a democracia de então lhe impunha. Vamos aos
detalhes.
Jânio da Silva Quadros teve uma carreira meteórica: em sete anos passou de obscuro
advogado e professor de Português a prefeito de São Paulo (1953), a governador
(1954) e a presidente (1960) — eleito com 48% dos votos (na época não havia
segundo turno). Renunciou sete meses depois, alegando motivos que até hoje dão margem a toda sorte de teorias conspiratórias. Parece ser consenso
entre os historiadores que sua ideia voltar ao poder por aclamação popular, só
que a estratégia não funcionou, mas jogou o país numa crise política que só seria debelada com a adoção do
parlamentarismo e, de quebra, abriu a janela de oportunidade para o
golpe de estado e a subsequente instalação de uma ditadura militar que durou
mais de duas décadas (a despeito de os que gostam de reescrever a história
afirmarem que ela nunca existiu).
Bolsonaro,
por seu turno, tenta usar o povo para não ter que sair, mas falemos mais pouco
sobre seu paradigma de outrora, que foi o primeiro político a transformar o combate à corrupção
em plataforma eleitoral. Usando como símbolo era a vassoura — para dar a ideia
de que varreria a corrupção — e dono de um gestual histriônico e um português
recheado de formas oblíquas, o político mato-grossense transformava cada
comício em show. Ao longo de sua trajetória política, abriu vários inquéritos
para apurar supostas irregularidades das gestões anteriores, enquanto insistia
na tese de que para ele a política era um enorme sacrifício pessoal. Pura encenação.
Eleito deputado
federal pelo Paraná em 1958, Jânio não compareceu a nenhuma
sessão do Congresso, deixando claro seu notório desdém pelo Legislativo. Dois
anos depois, representando o mesmo papel de candidato solitário que recebia
apoio de partidos, e não como representante de partido, derrotou Teixeira Lott e nacionalizou seu
discurso, passando de fenômeno paulista a fenômeno nacional. Em seus sete meses
na Presidência, reforçou suas características mais conservadoras. Não teve
problemas com o Congresso — aprovou tudo o que considerava importante —, mas
fez um governo bipolar, adotando um programa econômico conservador e desvalorizou
a moeda (fazendo a inflação subir), ao mesmo tempo em que implantava a política
externa independente, rompendo com o alinhamento automático com os EUA em plena
Guerra Fria, quando a questão cubana estava no auge. Paralelamente, buscava
estabelecer uma relação direta com os governos estaduais e se imiscuía em
questões irrelevantes, como os biquínis e as brigas de galo que chegou a
proibir.
Mas o que parecia
novo estava eivado do velho golpismo latino-americano, do desejo pelo poder
absoluto. Jânio abandonou a presidência
— alegando “forças terríveis” — num autogolpe que surpreendeu até mesmo os
ministros militares, que não foram consultados, apesar de suas simpatias pelo
autoritarismo janista. Ele esperava que sua renúncia não fosse aceita, e que um
clamor popular exigisse seu retorno à presidência com amplos poderes políticos —
ou seja, sem o Congresso para
incomodá-lo. Puro delírio. Jânio deixou
a base aérea de Cumbica solitário e rumou — a bordo de um DKW — para o litoral, de onde partiu dias depois para a Inglaterra,
deixando no seu rastro uma grave crise política, que só seria resolvida com
a posse
de Jango, em setembro de 1961, sob regime parlamentarista.
Como o lobo perde
o pelo mas não larga o vício, Jânio
se candidatou no ano seguinte ao governo de São Paulo, mas foi derrotado por Adhemar de Barros. Teve os direitos políticos
cassados pela ditadura militar, mas recuperou-os em 1974. Em 1978, manifestou a
intenção de concorrer à sucessão de Paulo
Maluf (um gatuno de marca maior, que hoje cumpre pena em prisão
domiciliar) ao governo do estado de São Paulo. Filiou-se ao PTB, mas deixou o partido sete meses
depois para ingressar no PMDB. Como
sua filiação foi recusada pela executiva nacional da sigla, voltou ao PTB, lançou-se candidato a governador
de São Paulo em 1982, mas perdeu para Franco
Montoro. Com o fim da ditadura, declarou apoio a Tancredo Neves e venceu Fernando
Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy na disputa pela
prefeitura de São Paulo, contrariando os prognósticos dos institutos de
pesquisa. FHC, na condição de
primeiro colocado nas sondagens eleitorais, chegou a tirar uma foto sentado na
cadeira de prefeito de São Paulo (que foi publicada pela Revista Veja). Na
cerimônia de posse, Jânio fez questão de ser fotografado com um tubo de inseticida
nas mãos para, segundo ele, “desinfetar a poltrona porque nádegas
indevidas a usaram".
Em sua derradeira
empreitada político-administrativa, o homem da vassoura repetiu seus lances
populistas habituais: pendurou uma chuteira em seu gabinete (para ilustrar o
suposto desinteresse em prosseguir na política), proibiu o uso de sunga e de biquini
fio-dental no Parque do Ibirapuera (onde
ficava a sede da prefeitura), obrigou a direção da Escola de Balé do Teatro Municipal a expulsar alguns
alunos tidos como homossexuais, mandou publicar no Diário Oficial do Município
os “bilhetinhos” que enviava a seus assessores, aplicou multas de trânsito
pessoalmente, posou para a imprensa com a camisa do Corinthians e fechou os oito cinemas que iriam exibir o
filme A Última Tentação de Cristo,
de Martin Scorsese, por considerar
a obra desrespeitosa à fé cristã.
Jânio adotou posturas autoritárias em diversas situações. Seu
governo foi marcado por insatisfações de vários setores do funcionalismo
público, materializadas através de greves e protestos nas proximidades de seu
gabinete, aos quais quase sempre respondia com demissões em massa. Também se
mostrou inflexível diante de manifestações de movimentos sociais (como o MST). Criou a Guarda Civil Metropolitana para, segundo ele, reforçar o
policiamento na cidade, mas seus adversários o acusavam de utilizá-la como mais
um de seus instrumentos de repressão. Afastou-se diversas vezes do cargo para
cuidar tanto de sua saúde quanto da de sua mulher, Eloá Quadros (falecida em 1990). Ao fim da gestão, quando já se
encontrava desgastado perante a opinião pública (apenas 30% dos paulistanos
aprovaram sua administração), foi acusado pelo então vereador Walter Feldmann de manter uma conta
bancária na Suíça. Nas eleições de 1988, apoiou João Leiva, embora Mellão
Neto e Mastrobuono,
integrantes de seu secretariado, disputassem a sucessão. Deixou o cargo dez dias
antes do final do mandato para passar o réveillon em Londres (cidade pela qual ele
era apaixonado), depois de incumbir seu Secretário dos Negócios
Jurídicos, Cláudio Lembo, de transferir
o bastão para a petista Luíza Erundina — talvez a maior calamidade travestida de alcaide paulistano
que esta cidade já viu.
Com a saúde
debilitada — em parte devido à manguaça, de que era fã incondicional —, Jânio declinou do
convite do PSD para disputar a
presidência da República em 1989 e apoiou o caçador de marajás — um
populista como ele, como viríamos a descobrir mais adiante. Naquele mesmo ano,
anunciou sua aposentadoria definitiva da política. No ano seguinte, a morte da
esposa contribuiu para agravar ainda mais seu estado de saúde, levando-o a passar os
últimos meses de vida entre casas de repouso e quartos de hospitais. Acabou falecendo no Hospital Israelita Albert Einstein, em 16 de fevereiro de
1992, em estado vegetativo decorrente de três derrames cerebrais.