O ex-presidente Michel
Temer, de novo em liberdade após curta estadia no xadrez, é o mais recente
porta-bandeira das tropas que combatem pelo cumprimento rigorosíssimo da lei,
nos seus detalhes mais extremos, e não admitem nenhum tipo de punição para
magnatas antes que a sua culpa fique comprovada no Dia do Juízo Universal.
Até outro dia, Temer
era “o golpista” — ou,
pelo menos, o vampiro que chefiava uma quadrilha de ladrões metida à
cada instante com malas de dinheiro vivo, crimes anotados em fitas gravadas e
outros horrores do mesmo quilate. Mas a vida brasileira tem sido isso mesmo.
Hoje em dia não importa quem você é ou o que você faz; se
estiver com o camburão da Lava-Jato
na sua cola o cidadão passa a ser imediatamente uma vítima do “moralismo”, da
“repressão judicial” e dos “linchadores” que querem “rasgar as leis deste
país”, etc,. etc,. Temer, assim,
passou a ser mais um símbolo do homem perseguido pela “ação ilegal” das
autoridades — e o seu
alvará de soltura
foi comemorado como uma vitória
do “estado de
direito”, da majestade das leis e da soberania da Constituição.
Tudo bem. Temer
só deveria ir para a cadeia depois de condenado em pelo menos um dos dez
processos por corrupção a que responde no momento; seus advogados sustentam que
ele é inocente em todos os dez, nunca cometeu nenhum delito em 40 anos de
política e enquanto os juízes acreditarem nisso, o homem não pode ser preso.
Ele não poderia se aproveitar para fugir do Brasil? Poderia, mas não iria
adiantar nada: seria preso no dia seguinte pela Interpol e mandado de volta. Não poderia, então, usar a liberdade
para destruir provas? Talvez, mas teria de ser flagrado pela polícia fazendo
isso para que a sua prisão fosse justificada. Mas o que transforma num desastre
essa história toda, tanto o ato de prender como o ato de soltar, é a perversão
da ideia de justiça que ela representa.
O problema, aí, não é o despacho do juiz Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro, que
causou tanto escândalo ao mandar prender o ex-presidente. O problema é a lei
que permite o despacho de Bretas.
Ela é exatamente a mesma que sustenta os direitos do réu. Conclusão: cumprir “a
lei”, como exigem os campeões do “direito de defesa”, significa aceitar que o
juiz Bretas tome decisões como essa
quantas vezes lhe der na telha.
O “Brasil civilizado”, esse consórcio de gente bem-educada,
liberal e moderna que acha um equívoco combater os crimes de primeira classe
com penas de prisão, vive num mundo impossível. Acha que a decisão de Bretas
foi uma aberração. Ao mesmo tempo fica horrorizado se alguém constata o fato
puro e simples de que é a sagrada Constituição brasileira, com toda a penca de
leis pendurada nela, que permite ao juiz agir exatamente como agiu. Não apenas
permite — incentiva,
protege e garante a absoluta impunidade para qualquer coisa que ele já tenha
decidido ou venha a decidir. Ele, Bretas, e mais 100% das autoridades
judiciárias do país. Mas vá alguém sugerir, mesmo com cuidado máximo, que a
Constituição é hoje a maior ferramenta para promover a negação da justiça no
Brasil — o mundo vem
abaixo na hora e quem fez a crítica
é excomungado
automaticamente como um inimigo do “Estado
de direito”. Mas aí é que está:
a verdade, para falar as coisas como elas realmente são, é
que a Constituição
funciona como a grande incentivadora do crime cinco estrelas — o que é cometido por gente
rica, poderosa ou detentora de autoridade a serviço do Estado. É
ruim na ida e ruim na volta.
A comprovação definitiva da insânia, no episódio Temer, é que o desembargador que o
soltou, um veterano especialista em libertar ladrões do erário, ficou sete anos
afastado da magistratura por acusações de praticar estelionato. Mas está lá de
volta, em cumprimento ao que diz a Constituição. Que tal? Mais: na mesma
ocasião, e no mesmo local, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro deu posse
a quatro deputados que se encontram presos na Penitenciária de Bangu e mais um
que está em prisão domiciliar. Ou seja: o sujeito não pode andar na rua, mas pode ser deputado estadual.
De novo, é
o respeito religioso à lei que produz esse tipo de depravação aberta. Parece
errado, mas a Constituição Cidadã diz que é certo. Tudo isso — Bretas, Temer, Athié,
presidiários-deputados
— significa a “vitória das instituições”, segundo nos garantem
os defensores da legalidade acima de tudo. Perfeito. O único problema é que as
instituições brasileiras de hoje são um lixo. Pode ser feio dizer isso, com
certeza. Mas dizer o contrário é simplesmente falso.
Com J.R. Guzzo