quarta-feira, 27 de março de 2019

E LA NAVE VA — PARTE II


Como diz o bordão da BandNews, “em 20 minutos, tudo pode mudar”. Prova disso é que, contrariando todas as expectativas, o desembargador Ivan Athié, presidente da 1ª Turma do TRF-2, antecipou a soltura de Michel Temer e de seus companheiros de infortúnio (clique aqui para ler a íntegra da decisão). O magistrado havia pautado a ação para a sessão desta quarta-feira, mas mudou de ideia: “Mesmo que se admita existirem indícios que podem incriminar os envolvidos, não servem para justificar prisão preventiva, no caso, eis que, além de serem antigos, não está demonstrado que os pacientes atentam contra a ordem pública, que estariam ocultando provas, que estariam embaraçando, ou tentando embaraçar eventual, e até agora inexistente instrução criminal, eis que nem ação penal há, sendo absolutamente contrária às normas legais prisão antecipatória de possível pena, inexistente em nosso ordenamento, característica que tem, e inescondível, o decreto impugnado”. Volto a esse assunto com mais detalhes na próxima postagem.

Em seu depoimento aos procuradores e agentes federais, Temer invocou o direito constitucional de ficar calado. Até aí, nenhuma surpresa: em 2017, quando sua conversa de alcova com o carniceiro bilionário veio a público, o ex-presidente afirmou que “o inquérito no STF seria o território onde surgiriam todas as explicações” e que seria feita “uma investigação plena e muito rápida para os esclarecimentos ao povo brasileiro”. Palavras vazias, como se veria mais adiante, quando as ações desmentiram o discurso e o esforço para barrar o processo ganhou vulto.

Na primeira noite que passou hospedado na PF do Rio, sua excelência rejeitou o jantar. Nos dias seguintes, declinou dos banhos de sol — mas alguém já ouviu falar em vampiro que toma sol? Brincadeira à parte, tivemos, ainda que por poucos dias, dois ex-presidentes presos por corrupção — ainda suposta, no caso de Temer, e confirmada por duas instâncias da Justiça, no caso de Lula. E pelo andar da carruagem, Dilma, que permanece no banco de reservas — ela é ré pelo crime de organização criminosa e foi acusada por Palocci de ter financiado sua eleição em 2010 com dinheiro de uma conta no exterior aberta por Joesley Batista, além de ter cometido crime de obstrução de Justiça ao avisar João Santana e Mônica Moura de sua prisão iminente —, pode ser convocada a qualquer momento para entrar em campo.

Por ter sido decretada dias antes de a Lava-Jato completar 5 anos e uma semana depois de o STF decidir pela competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes de corrupção relacionados a outros delitos de natureza eleitoral — em particular, o caixa 2 —, a prisão de Michel Temer e companhia limitada foi vista por muita gente como “retaliação”. O ex-ministro da Secretaria de Governo e principal integrante da tropa de choque palaciana, Carlos Marun, afirmou que o ex-presidente foi pego numa queda de braço entre a Lava-Jato e o STF. E disse mais: “Tem a suspeita de que exista algo por trás disso e que os motivos sejam outros. De que se busque com essa confusão causada com essa decisão inconsequente e ilegal, outros objetivos.” Só não esclareceu quais seriam esses objetivos.

Michel Temer é alvo de uma dezena de inquéritos e foi denunciado pela PGR em três oportunidades. Surpresa, portanto, não foi a sua prisão preventiva, mas o fato de ela não ter sido decretada antes. Retaliação foi a decisão tomada por 6 dos 11 ministros supremos, a despeito de a Justiça Eleitoral não ter estrutura para lidar com ações criminais complexas (fato reconhecido, inclusive, pelo ex-ministro Carlos Velloso, que presidiu o TSE em duas ocasiões). Dizer que a Justiça Eleitoral é mais célere que a Federal e que é possível reestruturá-la para atender às novas demandas, a exemplo do que já se viu em varas federais, é uma coisa, mostrar onde está a varinha de condão capaz de realizar essa mágica é outra.

Observação: Talvez a PGR Raquel Dodge seja a fada que detém tal varinha. Logo após a esdrúxula decisão do Supremo, ela disse que iria mudar a forma de atuação do MP nesses casos. Uma das alternativas que ela cogitou à época era priorizar o pedido de abertura de inquéritos por corrupção, lavagem de dinheiro e outros crimes sobre o de caixa 2, o que remeteria os casos para a Justiça comum; outra, revelada mais recentemente, é solicitar ao TSE que dê poderes aos magistrados federais para atuar em casos eleitorais simplesmente alterando uma das duas resoluções da Corte que tratam da composição da Justiça Eleitoral.

Em casa onde falta o pão, todos brigam e ninguém tem razão. O melhor para a Lava-Jato seria aprovar um projeto de lei que reformasse o Código Eleitoral e neutralizasse essa decisão nefasta do STF. Aliás, uma proposta nesse sentido integra os dispositivos anticrime que o ministro Sérgio Moro enviou ao Congresso — e que vem gerando atritos com o presidente da Câmara, que também é investigado no âmbito da Lava-Jato. A mudança na legislação certamente produziria melhores resultados do que uma CPI para investigar os ministros, ou a apresentação de pedidos de impeachment contra eles a cada julgamento com resultado divergente do esperado ou desejado. Mas não é o que se vê nas redes sociais, infelizmente, onde o número de postagens defendendo o fechamento STF, a intervenção militar no Legislativo e outras bobagens que tais não para de crescer.

É lamentável que os bolsomínions fanáticos sejam ainda mais extremados do que a patuleia ignara, cuja fidelidade canina a Lula e seus asseclas sempre me pareceu desbragada, e sua total impermeabilidade à voz da razão, uma falha genética irremediável. Mas o pior não é isso: Bolsonaro orientou os quartéis a comemorarem o aniversário da revolução de 1964, que deu início a um regime de exceção que durou 21 anos. O núcleo militar do primeiro escalão do Executivo, porém, pede cautela no tom para evitar ruídos desnecessários diante do clima político acirrado e dos riscos de polêmicas em meio aos debates da reforma da Previdência. Enfim, são tempos estranhos, como o ministro Marco Aurélio costuma relembrar sempre que uma oportunidade se lhe apresenta.  
 
A cizânia tomou conta da nossa mais alta corte, onde alas garantista e punitivista se digladiam, ministros tomam decisões monocráticas ao arrepio da jurisprudência pacificada por decisões colegiadas,  promovem bate-bocas de deixar o BBB. Não muito tempo atrás, o ministro Barroso, referindo-se a um colega de toga (que o leitor certamente sabe quem é), afirmou haver no Supremo “gabinete distribuindo senha para soltar corrupto, sem qualquer forma de direito e numa espécie de ação entre amigos”. Isso depois de classificar seu par na corte como uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia“ e acusá-lo de “desmoralizar o Tribunal”.

Apenas dois ou três ministros celestiais parecem sintonizados com a opinião pública e preocupados com o combate a corrupção. Mas nem por isso devem prosperar bizarrices como a sugerida por Bolsonaro, durante a campanha, de nomear mais 10 ministros “isentos” para fazer frente à banda podre do STF. Por outro lado, deuses do Olimpo do Judiciário podem (e devem) ser investigados e, se for o caso, impedidos e até presos; o que não se admite é buscar soluções não-republicanas para mantê-los na rédea curta. Foi isso que fez Hugo Chávez na Venezuela, até porque o Poder Judiciário costuma ser o primeiro alvo das ditaduras incipientes.