Marisa Letícia Lula da Silva morreu no dia 3 de fevereiro de 2017, aos 66 anos, vítima de um aneurisma. Embora ela fosse hipertensa, sedentária e fumante, sua morte foi inesperada. Durante o velório, o viúvo proferiu um discurso emocionado, regado a lágrimas, e a imprensa concedeu ampla cobertura à desgraça que se abateu sobre o Clã Lula da Silva. Nas redes sociais, mensagens de solidariedade, pêsames e congêneres dividiram espaço com posts publicados por gente que não morria de amores por Lula, pelo PT e pela própria ex-primeira dama. Alguns resvalaram do mau gosto para o grotesco, o que é indesculpável, mas, ainda assim, compreensível.
Militantes de esquerda em geral e puxa-sacos em particular relembraram a infância pobre da falecida, que estudou somente até a 7ª série, começou a trabalhar aos 9 anos, enviuvou do primeiro marido aos 20, liderou a marcha pela libertação do segundo, costurou a primeira bandeira do PT, apoiou o chefão da ORCRIM nas campanhas; enfim, pintaram-na como uma Amélia melhorada, com a inteligência de Marie Curie, a abnegação de Madre Teresa, a têmpera de Margaret Thatcher e a fleuma de Hillary Clinton (no episódio Monica Lewinsky).
Curiosamente, ninguém mencionou que a finada deixou patente, bem do Escândalo do Mensalão, a notória incapacidade petista de separar o público do privado ao mandar plantar, no gramado do Alvorada, um canteiro de flores vermelhas no formato da estrela símbolo do partido. Tampouco foi lembrado que ela ― muito convenientemente ― teria “fechado os olhos” (aqui metaforicamente) para o affair do marido com Rosemary Noronha (entendeu agora o que eu quis dizer com a “fleuma de Hillary”?).
Rose, como a “segunda-dama” era chamada informalmente, foi apresentada a Lula pelo guerrilheiro de araque José Dirceu. O “caso” teve início na década de 90, mas só veio a público em 2012, quando a PF deflagrou a Operação Porto Seguro. Nesse meio tempo, a moçoila acompanhou “O Chefe” ― ou “Deus”, como ela costumava se referir a ele ― em pelo menos 32 viagens oficiais. Seu nome não constava do manifesto de voo e ela não compartilhava com Lula a mesma suíte, mas ficava nos melhores hotéis, comia do bom e do melhor em restaurantes estrelados e, segundo Leo Pinheiro, recebia R$ 50 mil por mês da OAS (também a pedido do petista, o empreiteiro teria incluído o marido de Rose na folha de pagamento da empresa).
Quando a história ganhou notoriedade, o repórter Thiago Herdy e o jornal O Globo entraram na Justiça com um pedido de quebra do sigilo dos gastos da dita-cuja no cartão corporativo da Presidência, mas o STJ empurrou a coisa com a barriga. Em 2014, quando o movimento “Volta, Lula” ganhou corpo, Dilma ― que prometeu “fez o diabo” para se reeleger ― ameaçou divulgar as despesas da concubina real, forçando o petralha a recuar.
Segundo o jornalista Cláudio Humberto, editor do blog Diário do Poder, os gastos com cartões corporativos no período de 2003 a 2015 somaram R$ 615 milhões (mais de R$ 51 milhões por ano), ao passo que no último ano do governo FHC a conta foi de “apenas” R$ 3 milhões. A farra foi tamanha que um alto funcionário do Ministério das Comunicações chegou a pagar duas mesas de sinuca com o cartão corporativo — que também foi usado por seguranças da “primeira-família” para pagar equipamentos de musculação e materiais de construção para Lurian, filha de Lula.
Em setembro de 2013, o jornalista Augusto Nunes publicou em sua coluna: "Neste sábado, Lula completará 288 dias de silêncio sobre o escândalo que protagonizou ao lado de Rosemary Noronha. Ele parece ainda acreditar que o Brasil acabará esquecendo as bandalheiras que reduziram a esconderijo de quadrilheiros o escritório da Presidência da República em São Paulo. No mais cruel dos dias para quem tem culpa no cartório, a edição de VEJA tratará de reiterar que a memória da imprensa independente não é tão leviana. As revelações contidas nas quatro páginas tornarão mais encorpada e mais cinzenta a pilha de perguntas em busca de resposta. Por exemplo: quem está bancando os honorários do oneroso exército de advogados incumbido de livrar de punições judiciais a vigarista de estimação do ex-presidente? Num depoimento à Polícia Federal, Rose não conseguiu explicar como comprou o muito que tem com o pouco que ganha. De onde vem o dinheiro consumido pela tropa de bacharéis que cobram em dólares americanos? Lula sabe”. Segue um excerto da matéria: A discrição nunca foi uma característica da personalidade de Rosemary Noronha. Quando servia ao ex-presidente em Brasília, ela era temida. Em nome da intimidade com o “chefe”, fazia valer suas vontades mesmo que isso significasse afrontar superiores ou humilhar subordinados. Nos eventos palacianos, a assessora dos cabelos vermelhos e dos vestidos e óculos sempre exuberantes colecionou tantos inimigos — a primeira-dama não a suportava — que acabou sendo transferida para São Paulo. Mas caiu para cima. Encarregada de comandar o gabinete de Lula de 2009 a 2012, Rose viveu dias de soberana e reinou até ser apanhada pela Polícia Federal ajudando uma quadrilha que vendia facilidades no governo. Ela usava a intimidade que tinha com Lula para abrir as portas de gabinetes restritos na Esplanada. Em troca, recebia pequenos agrados, inclusive em dinheiro. Foi demitida, banida do serviço público e indiciada por crimes de formação de quadrilha e corrupção. Um ano e meio após esse turbilhão de desgraças, no entanto, a fase ruim parece ter ficado no passado. Para que isso acontecesse, porém, Rosemary chegou ao extremo de ameaçar envolver o governo no escândalo."
No discurso emocionado que proferiu no velório da esposa, Lula disse que ele dona Marisa foram foram vítimas de injustiça, que a mulher morreu "triste com a maldade que fizeram com ela" e que ele espera que "os facínoras que fizeram isso um dia peçam desculpas". Confira um trecho do comício:
“Se alguém tem medo de ser preso, este que está aqui, enterrando sua mulher hoje, não tem. Não tenho que provar que sou inocente. Eles que precisam dizer que as mentiras que estão contando são verdadeiras. Marisa foi mãe, foi pai, foi tia, foi tudo; eu e ela nunca brigamos. Marisa nunca pediu um vestido, um anel. Eu vou continuar agradecendo à Marisa até o dia que eu não puder mais agradecer, o dia em que eu morrer. Espero encontrar com ela, com esse mesmo vestido que eu escolhi para colocar nela, vermelho, para mostrar que a gente não tinha medo de vermelho quando era vivo, e não tinha medo de vermelho quando morre”.
Neste vídeo, a jornalista e hoje deputada federal Joice Hasselmann resumiu em 6 minutos, de maneira irreprochável, o que pensava da desfaçatez do viúvo que transformou esquife em palanque e foi aplaudido pelos micos amestrados de costume — conquanto muita gente tenha lido nas entrelinhas a monstruosidade moral de um safardana nauseabundo, capaz de usar a morte da mulher para fazer proselitismo político.
Continua...