O presidente candidato à reeleição, que sempre chamou a Globo de "lixo", foi buscar na lixeira do telejornal da emissora os 15 pontos percentuais que o separam do primeiro colocado (segundo dados do Datafolha). Durante a entrevista, cobrado a assumir um compromisso de respeito ao resultado das urnas, Bolsonaro condicionou sua postura a “eleições limpas e transparentes” e mentiu sobre urnas eletrônicas, economia e combate à pandemia, além de negar que xingou ministros do STF/TSE. Nas capitais de estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Bahia, panelaços fizeram as vezes de trilha sonora.
Finda a tragicomédia mambembe, o presidente foi ao Twitter acenar para sua bolha: "Foi uma enorme satisfação participar do pronunciamento de William Bonner. Na medida do possível, com muita humildade, pudemos esclarecer e levar algumas informações que raramente são noticiadas em sua emissora. Pela paciência e audiência, o meu muito obrigado a todos" declarou Bolsonaro, referindo-se ao que o comité de campanha chamou de tom inquisitório do apresentador do JN. O filho Flávio, coordenador de sua campanha à reeleição, fez eco à fala do pai:"Apesar do tom arrogante, caras e bocas dos entrevistadores, não conseguiram desestabilizar Bolsonaro que, com humildade e sem fugir dos assuntos, ainda encerrou brilhantemente".
Integrantes do staff político de Bolsonaro esperavam que a aparição do mandatário no telejornal mais visto do país melhorasse sua posição como candidato. Mas o veneno começou a escorrer já na primeira intervenção: quando William Bonner pediu-lhe que ocupasse a cadeira (giratória) com cuidado, Bolsonaro respondeu: "Isso aqui tá parecendo uma plataforma de tiro de artilharia. Estou confortável aqui." Na sequência, distribuiu rajadas, como se levasse suas virtudes presumidas no coldre.
O presidente foi avisado de que os entrevistadores seriam mais incisivos agora do que na entrevista de 2018, e o aconselharam a vigiar a língua. Não obstante, a exemplo do escorpião da fábula, Bolsonaro é incapaz de agir contra a própria natureza. Mesmo assim, como bem observou Josias de Souza, o capitão orientado pelo filho Carlos — gestor na engrenagem que industrializa o ódio bolsonarista — "esmurrou as Organizações Globo sem tocá-las".
Com gestos ensaiados, Bolsonaro exibiu na mão esquerda uma cola onde se lia o nome do doleiro Dario Messer. Era como se convidasse os telespectadores a fazer uma busca no Google. Em sua delação premiada, Messer disse que repassou dólares em espécie à família Marinho (coisa que os donos da Globo sempre negaram). Se mencionasse diretamente o episódio, o entrevistado amargaria o contragolpe de um desmentido formal; sugerido-o sub-repticiamente, conseguiu que a maledicência ganhasse as redes sociais sem resposta.
O presidente atravessou os 40 minutos de entrevista distribuindo mentiras, meias verdades e manipulações, mas com respeito e sobriedade. Soou na bancada do JN como se estivesse completamente fora de si. Não disse nada capaz de seduzir multidões de eleitores pobres ou de ex-bolsonaristas indecisos, e tampouco roubou votos de Lula — que foi poupado durante toda a entrevista. Mas não perdeu votos — algo que, para um mandatário chinfrim, não deixa de ser um grande feito.
Triste Brasil.