Nem todo mundo que pesquisa sobre voto nulo anula o voto, mas o aumento no volume de buscas — que dobrou de 2010 para 2014 e mais uma vez em 2018 — é no mínimo sugestivo. Não se trata de alienação ou ignorância, como bem salientou Carlos Graieb em artigo publicado na revista eletrônica Crusoé sob o título Voto Nulo não é Pecado — cuja leitura eu recomendo. E nem pecado. Pecado cometem os "papa-dízimo" que exploram a boa-fé dos "fiéis" empurrando-lhes bíblias ilustradas com a foto de certo ex-ministro pastor. Aleluia!
Vale lembrar que o voto é facultativo apenas para quem tem entre 16 e 18 anos, pessoas com mais de 70 anos e analfabetos. Para os demais, o direito de voto deve ser exercido compulsoriamente (trata-se, dizem, de um “dever cívico”). Caso não compareça nem justifique a ausência perante a Justiça Eleitoral, o eleitor relapso fica sujeito a pena de multa (R$ 3,50) e demais sanções previstas no artigo 7 da Lei nº 4.737 de 15 de Julho de 1965.
Nossa democracia faz lembrar aquelas fotos antigas de reis africanos que imitavam os trajes, jeitos e enfeites dos peixes graúdos que lhes falavam das maravilhas da Rainha Vitória ou do Imperador Napoleão III. As mais clássicas mostram uns negros magros, ou gordíssimos, com uma cartola de segunda mão na cabeça, calças rasgadas, pés descalços, mas que se imaginavam nobres, modernos e iguais a seus pares europeus, embora não passassem de pobres coitados que, com as novas roupas e os acessórios, conservavam seus colares com ossos, pulseiras de metal e argolas na orelha ou no nariz. Das nações mais evoluídas, suas majestades copiavam os trajes, mas não aprendiam as virtudes. Continuaram desgraçando a si e a seu país enquanto eram roubados até o último papagaio pelos que vieram ensiná-los a ter valores cristãos, avançados e democráticos.
Por outras vias, acontece no Brasil mais ou menos a mesma coisa. Na fotografia aparece uma democracia de Primeiro Mundo, mas a realidade do dia a dia mostra pouco mais que uma cópia barata e malsucedida do artigo legítimo. Temos uma Constituição, eleições a cada dois anos e uma Câmara de Deputados. Temos, imaginem só, um Senado e até um presidente do Senado. Temos um Supremo Tribunal Federal e até um presidente do Supremo Tribunal Federal; seus juízes se chamam ministros, usam togas pretas como os reis africanos usavam cartolas, e escrevem (às vezes até uma frase inteira) em latim. Temos partidos políticos. Temos procuradores gerais, parciais, federais, estaduais, municipais, especializados em acidentes do trabalho, patrimônio histórico, meio ambiente, infância, urbanismo e praticamente todas as demais áreas da atividade humana. Temos uma Justiça Eleitoral. Temos centenas de direitos legais, inclusive ao lazer, à moradia e ao amparo, se formos desamparados. Não falta nada — a não ser a democracia.
Em matéria de democracia, como em tantas outras coisas que separam as nações desenvolvidas das subdesenvolvidas, o Brasil ficou só na foto. As eleições são subordinadas a todo tipo de patifaria, a começar pelo voto obrigatório, seguido do horário eleitoral compulsório no rádio e na televisão e de deformações propositais que entopem a Câmara Federal com políticos das regiões que têm menor número de eleitores. Os resultados são um monumento à demagogia, à corrupção e à estupidez.
Dos cinco presidentes eleitos pelo voto popular após o fim da ditadura, dois foram depostos por impeachment e um foi condenado a mais de 26 anos de cadeia (e convertido posteriormente a "ex-corrupto" por uma manobra abjeta do Judiciário, mas isso é outra conversa). Dos 513 deputados e 81 senadores, cerca de 40% respondem a algum tipo de procedimento penal, a maioria por corrupção — fora das penitenciárias, é a maior concentração de criminosos em potencial por metro quadrado que existe no território nacional.
Em sua campanha à reeleição, a presidanta Dilma Rousseff gastou R$300 milhões — fornecidos, em grande parte, pelos maiores criminosos confessos do Brasil. O eleitorado, em grande parcela, é ignorante, desinformado e desinteressado pelos seus direitos. Some-se a isso uma aberração chamada Justiça Eleitoral, que existe para dar ao país eleições exemplares, mas permite a produção dos políticos mais ladrões do mundo.
Temos 35 partidos políticos, que se reproduzem como ratos; alguns não têm um único deputado ou senador no Congresso. Essa monstruosidade não tem nada a ver com liberdade política. Quase todos os partidos brasileiros são criados apenas para meter a mão nas verbas de um “fundo partidário”, que já anda perto de 1 bilhão de reais por ano, tirados dos impostos pagos pelos contribuintes e distribuídos aos políticos. Recebem uma cota de tempo no horário eleitoral obrigatório, que põem à venda nos anos em que há eleição; também cobram para aceitar a inscrição de candidatos.
Os direitos dos cidadãos, na verdade, talvez representem a área mais notável das semelhanças entre a democracia brasileira e os reis africanos que aparecem nas fotos-símbolo do colonialismo. Nunca houve tantos direitos escritos nas leis; nunca o poder público foi tão incompetente para mantê-los. Não consegue, para desgraça geral, garantir nem o mais importante de todos eles — o direito à vida. Há uma recusa sistemática em combater o crime por parte de nove entre dez políticos com algum peso. Pode passar pela cabeça de alguém que exista democracia num país como esse?
Os arcaicos meios e modos da política brasileira, que sabidamente não acompanharam a evolução de variados setores desde a redemocratização, volta e meia dão as caras, suscitam breves debates e de pronto voltam ao recôndito de suas obsoletas tocas. Precisamos mesmo que o Estado nos diga quando, onde e como deve ser permitido fazer campanha eleitoral? Claro que não, assim como não temos a menor necessidade de ser obrigados a votar, por definição o exercício de um direito. São amarras estatais absolutamente anacrônicas, tentativas de controle que, incompatíveis com a realidade, não só infantilizam o eleitorado, mas também deviam o foco daquilo que realmente precisa ser combatido e corrigido.
Até 2015, as campanhas tinham duração de noventa dias; desde então o prazo foi reduzido para 45 dias e assim é ainda hoje. Antes disso não são permitidos comícios, divulgação de candidaturas nos espaços reservados aos partidos no rádio e na televisão e muito menos pedir votos em quaisquer atos públicos. Mas a pergunta que se coloca é: tais regras, individualmente ou em conjunto, são respeitadas?
É público e notório que inexiste fiscalização, viceja a tolerância por parte da Justiça Eleitoral, grassa a cumplicidade leniente entre partidos, mas o fato é que essas normas não são observadas pelo simples fato de que não fazem o menor sentido. Comícios tais como se faziam antigamente já não existem. Se a regra fosse aplicada com rigor, estariam enquadradas nela as manifestações de natureza política que acontecem o tempo todo e nas quais o pedido de votos está implícito. Temos campanhas autorizadas por 45 dias e vivemos em clima de eleição há quase 4 anos, desde a proclamação dos resultados eleitorais de 2018.
Se os presidentes dão o exemplo — e não só por culpa da reeleição, pois o defeito não é da norma, mas, sim, dos homens e das mulheres —, natural que seus adversários atuem da mesma maneira, esperando que a imprensa registre os movimentos e que a parcela da sociedade interessada em política entre na onda. De acordo com a lei, são todos infratores: políticos, partidos e brasileiros engajados na discussão eleitoral.
A restrição em vigor cria um falso delito lastreado em amarra arcaica. Fere a liberdade de expressão, mas deixa de lado o que realmente é grave: o criminoso, por inconstitucional, abuso de poder político e econômico cometido principalmente, mas não só, por governantes. O controle deveria estar aí, e não na tutela do exercício da liberdade e dos direitos dos cidadãos.
Costuma-se dizer que as instituições estão funcionando no Brasil. Se funcionassem, a Câmara já teria aberto um processo de impeachment contra Bolsonaro. O presidente da Câmara engavetou quase 150 pedidos, e o procurador-geral se finge de morto diante de dezenas de denúncias do mandatário por crimes comuns. Enquanto isso, o Centrão transforma a ocupação do Orçamento federal num processo de bolsonarização das instituições.
Se as instituições funcionassem, o procurador-vassalo já teria formulado uma dúzia de denúncias criminais contra o presidente-suserano, que produz provas contra si mesmo em escala industrial. Ao aprovar a recondução de Aras ao cargo de chefe do departamento de blindagem do presidente, com os votos de integrantes da CPI do Genocídio, o Senado ofereceu ao país mais uma evidência de que as instituições claudicam.
Não fosse a "disfuncionalidade" das instituições, Bolsonaro já teria sido responsabilizado por transformar a usina de confusões do Planalto no único empreendimento que funciona a pleno vapor no seu governo.
Triste Brasil.