quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O CORAÇÃO DE D. PEDRO I (PARTE FINAL)


Para escamotear o autoritarismo, D. Pedro I convocou eleições para uma nova Constituinte, mas não estabeleceu data, e o decreto foi logo esquecido. Quatro meses depois, pela "graça de Deus e unânime aclamação dos povos", ele outorgou a nossa primeira Constituição e, dos 179 artigos, reservou 88 para o Poder Legislativo. Mas seu apreço pelo Parlamento não era sincero. Tanto que o manteve fechado por dois anos e meio, e, quando o reabriu, limitou seu período de funcionamento a quatro meses por ano. 

"Democrático", o imperador definiu que as eleições seriam indiretas. Nos municípios, votariam os maiores de 25 anos, livres (30% da população era escrava), excluídos os criminosos, criados e quem não tivesse renda anual mínima de 200 mil-réis — a restrição da renda tinha como referência alqueires de farinha de mandioca, daí a expressão Constituição da mandioca. Os eleitos nos municípios seriam eleitores para as esferas provincial e nacional. 
 
"O Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros", rezava a Constituição. Todos, para sua alteza, era uma ínfima minoria: os livres e que tivessem renda mínima. Democracia era boa, mas desde que controlada. O Senado seria eleito — de forma restrita, como era estipulado —, mas os eleitores somente indicariam suas preferências ao imperador. Dos três mais votados, um deles seria escolhido. O mandato seria vitalício (com o claro objetivo de evitar tanto quanto possível as eleições para o Senado). 
 
Observação: Machado de Assis retratou como a vitaliciedade transformava aquela Casa em um cenáculo de anciãos: "o Marquês de Itanhaém, quando chegava ao Senado, "mal se podia apear do carro, e subir as escadas; arrastava os pés até à cadeira [...] Era seco e mirrado [...]. Nas cerimônias de abertura e encerramento agravava o aspecto com a farda de senador. Se usasse barba, poderia disfarçar o chupado e engelhado dos tecidos, a cara raspada acentuava-lhe a decrepitude".
 
Precavido, D. Pedro I reservou 11 artigos para tratar da "família imperial e sua dotação". Determinou que caberia ao país manter seus príncipes e à Assembleia, determinar os valores das dotações. Pensando em si mesmo, estabeleceu, no artigo 108, que “a dotação assinada ao presente imperador e à sua augusta esposa deverá ser aumentada, visto que as circunstâncias atuais não permitem que se fixe desde já uma soma adequada ao decoro de suas augustas pessoas e dignidade da nação". Sem distinguir os recursos familiares daqueles originários do Erário nacional — uma prática nociva que perdura até hoje —, ele impôs, no artigo 115, que "os palácios e terrenos nacionais, possuídos atualmente pelo senhor D. Pedro I, ficarão sempre pertencendo aos seus sucessores; e a nação cuidará nas aquisições e construções que julgar convenientes para a decência e o recreio do imperador e sua família".
 
A despeito do manto de imperador constitucional, D. Pedro I impôs mais um artigo centralizador: "o governador provincial seria nomeado pelo imperador, que o poderá remover, quando entender que assim convém ao bom serviço do Estado". Como, no Brasil, os maus exemplos são sempre seguidos, o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar implantada em 1964 também se valeram desse artifício e impuseram à força os governadores estaduais como meros delegados do poder central.
 
Dentro desse perfil autoritário, nosso primeiro imperador reservou apenas 14 artigos constitucionais para o Judiciário — três a mais que os dedicados aos recursos pecuniários da família real — e restringiu o quanto pôde a autonomia dos juízes. Mesmo afirmando que "o poder judicial é independente", o artigo 154 determinava que "o imperador poderá suspendê-los [os juízes] por queixas contra eles feitas, precedendo audiência dos mesmos juízes, informação necessária, e ouvido o Conselho de Estado". Como se não bastasse tamanha concentração de mando, sua majestade criou o quarto poder — o Moderador —, que era "delegado privativamente ao Imperador como chefe supremo da nação". Além disso, determinou que “o Imperador é o chefe do Poder Executivo" e que "a pessoa do Imperador é inviolável e sagrada, não estando sujeita a responsabilidade alguma". 
 
Esse sentimento de poder absoluto explica como, em 1831, sem apoio militar e sob forte pressão popular, D. Pedro I optou pela renúncia. No texto de cinco linhas, em um papel sem timbre, escreveu: "Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei mui voluntariamente abdicado na pessoa do meu mui amado e prezado filho o senhor D. Pedro de Alcântara". O documento não tem destinatário nem explicita do que ele abdicou — não precisava: para o imperador, o poder era uma extensão de si mesmo. E pior é que essa mentalidade fez escola.
 
Não é acidental que o autoritarismo esteja tão presente no Brasil. O país já nasceu com uma organização política antidemocrática. E o poder nunca se reconheceu como arbitrário. Ao contrário, D. Pedro I inaugurou o arbítrio travestido de defensor das liberdades — a esquizofrenia de um discurso liberal e uma prática repressiva. No mesmo ano da Constituição outorgada, escreveu que era indigno "um governante que não ama a liberdade de seu país e que não dá aos povos aquela justa liberdade" Continuou: "Amo a liberdade e, se me visse obrigado a governar sem uma Constituição, imediatamente deixaria de ser imperador, porque quero governar sobre corações com brio e honra, corações livres". Encontrou resposta dos autênticos liberais, como Cipriano Barata: "Os habitantes do Brasil desejam ser bem governados mas não se submeter ao domínio arbitrário". E foi ainda mais direto: ele "não é o nosso dono".
 
No fim da Constituição, D. Pedro I incluiu algumas garantias políticas e civis no artigo 179. Mesmo perseguindo, ameaçando e prendendo jornalistas que criticavam seus atos, a Carta fala que "todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura". Não foi o que a prática imperial demonstrou: em junho de 1823, o jornalista Luís Augusto May, redator de A Malagueta, acreditando no “liberalismo”, fez duros ataques ao governo. Em vez do respeito à liberdade de imprensa, ele foi alvo de um bárbaro espancamento na própria casa por um grupo de quatro mascarados (algumas fontes informam que o imperador teria participado pessoalmente do ato). Ironicamente, o mesmo artigo constitucional dispunha que "todo cidadão tem em sua casa um asilo inviolável".
 
Ainda proclamando os direitos do cidadão, e mantendo a dissociação entre o Brasil real e o legal, a Constituição determinava que "as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes". Mas pior, muito pior, é o parágrafo 19 do mesmo artigo: "Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as penas cruéis". 
 
A ironia e a crueldade desse parágrafo são enormes. Até 1886, dois anos antes da Lei Áurea, os escravos continuavam a ser castigados barbaramente por seus senhores. Durante todo o Império vigorou o Código Criminal, que, no artigo 60, determinava que, "se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado à de açoites, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro, pelo tempo e maneira que o juiz determinar". 

Já o artigo 44 dispunha que "a pena de galés sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados". Tal castigo só foi abolido após a morte de dois escravos que tinham recebido uma pena de 300 açoites cada um. O fato, ocorrido a 70 quilômetros do Rio de Janeiro, teve enorme repercussão, e o Parlamento acabou aprovando a eliminação desse castigo corporal. Mas não foi tão simples assim. Parlamentares defensores da escravidão argumentaram que, com a extinção da pena de açoites, restariam as de galés e de prisão com trabalho, e nenhuma delas seria eficaz com relação ao escravo. Para muitos, a de prisão com trabalho, sendo este, como deve ser, regular, tornar-se-ia até um melhoramento da condição senão um incentivo ao crime.
 
Dos países latino-americanos, foi no Brasil que o trabalho escravo negro permaneceu por mais tempo. Em 1870, todos os 643 municípios do Império possuíam escravos. O primeiro golpe na escravatura foi a abolição do tráfico, ocorrido depois de 40 anos de pressões britânicas, pela Lei Eusébio de Queirós (1850). Em 1871, depois de intensos debates, foi aprovada a Lei do Ventre Livre, com o propósito de transformar o regime de trabalho gradualmente, sem abalar a estrutura econômica — mesmo assim, encontrou forte resistência, especialmente nas províncias cafeeiras. Na Câmara, a lei foi aprovada por 65 votos; dos 45 contrários, 30 foram de representantes dos produtores de café, principal produto de exportação do país. O fundo de emancipação criado pela lei obteve poucos resultados: os proprietários aproveitaram para libertar escravos doentes, portadores de deficiência física, cegos, em suma, aqueles "imprestáveis" para o trabalho.
 
A Constituição de 1824 foi a mais longeva — não exatamente por suas qualidades, mas pelas características do regime imperial. Tudo indicava que ela passaria por modificações com o reinado da Princesa Isabel, mas a abolição e as transformações oriundas do grande desenvolvimento da economia cafeeira estavam levando ao nascimento de uma sociedade mais plural, e o golpe militar republicano de 1889 acabou interrompendo esse processo.
 
Fonte: A História das Constituições Brasileiras — Prof. Marco Antonio Villa