Observação: Faço minhas as palavras de Fernando Gabeira: "Nestes 200 anos de independência do Brasil, a grande ideia do governo foi trazer o coração de Dom Pedro I para uma exposição no país. Não sei bem o que isso revela sobre nós. Poderia ser o cérebro, as amígdalas, o pomo de adão, não importa, certamente um debate mais amplo cumpriria melhor o papel de entender o que se passou por aqui e em Portugal no momento da independência. Um coração transportado numa urna de mogno — madeira que, por sinal, foi quase extinta pela civilização luso-brasileira — dificilmente aumentará a compreensão dos brasileiros sobre sua história."
No final de agosto de 1822, semanas antes do célebre “Grito do Independência” — que Pedro Américo imortalizou em seu tão célebre quanto fantasioso quadro, e que Evaristo da Veiga poetizou, no Hino da Independência, aludindo à ruptura dos grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil —, o então príncipe regente D. Pedro I se deslocou até província de São Paulo. Na volta, ele recebeu três cartas: uma, de seu pai, com ordens para retornar a Portugal e se submeter ao rei e às Cortes (o Parlamento da época); outra, de José Bonifácio, aconselhando-o a romper com Portugal; e a terceira, da esposa, apoiando a decisão do ministro e advertindo: "O pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece." Impelido pelas circunstâncias, sua alteza teria desembainhado a espada e rompido os laços de união política com Portugal com a célebre frase "Independência ou Morte!"
Na versão romanceada dos livros didáticos e imortalizada por Pedro Américo em seu tão célebre quanto fantasioso quadro “Grito do Independência”, D. Pedro e sua comitiva trajavam vistosos uniformes de gala e montavam garbosos puros-sangues. Despida desse glamour fantasioso, o príncipe-regente e seus acompanhantes (não mais que dez pessoas) montavam mulas, já que a parte do trajeto feito pela Serra do Mar demandava montarias fortes e resistentes, e não simplesmente elegantes. Eles estavam suados, sujos e amarfanhados. O rio Ipiranga não passava de um córrego, e o "grito" não se deu exatamente às suas margens, mas numa colina que ficava nas imediações, e que não foi escolhida por ser bucólica e servir de pano de fundo para a efeméride: o préstito imperial só parou ali porque D. Pedro precisou aliviar os intestinos. E já que estava "soltando um barro", sua alteza soltou também o histórico grito da independência.
No início do século XIX, a antiga colônia suplantou economicamente a metrópole, de modo que seria uma aberração manter a união por causa do antagonismo de interesses. Depois que D. Pedro decidiu permanecer no Brasil (em 9 de janeiro de 1822, que ficou conhecido como "Dia do Fico") a independência ficou mais próxima. Em maio, o príncipe-regente recebeu o título de Protetor e Defensor Perpétuo do Brasil, concedido pelo Senado da Câmara do Rio de Janeiro. Em junho, expediu um decreto convocando uma Assembleia Constituinte (não estava claro quais eram suas reais atribuições, pois estava em andamento nas Cortes a redação de uma nova Constituição, que serviria para todo o Império, incluindo, obviamente, o Brasil). Foram eleitos 100 deputados, mas a primeira reunião só ocorreu em maio de 1823.
D. Pedro concluiu seu discurso na sessão de abertura com ameaças implícitas à "licenciosa liberdade" e dizendo esperar que a Carta "mereça a minha imperial aceitação". A resposta da Assembleia já denotava a possibilidade de um conflito entre os poderes. O voto, redigido por Antônio Carlos, irmão de José Bonifácio, dizia que a Constituinte não trairia os votos recebidos "oferecendo os direitos da Nação, em baixo holocausto ante o trono de Vossa Majestade Imperial, que não deseja e a quem mesmo não convém tão degradante sacrifício", e que as prerrogativas da Coroa, que completariam o ideal da monarquia, "quando se conservam em raias próprias, são a mais eficaz defesa dos direitos do cidadão e o maior obstáculo à erupção da tirania de qualquer denominação que seja".
Dezenas de sessões e muito debate depois, o projeto constitucional, liberal demais para um autocrata, não agradou ao imperador. Em 11 de novembro, a Assembleia declarou-se em sessão permanente, mas foi cercada por centenas de soldados e dissolvida por D. Pedro I. Parlamentares foram presos — entre os quais o próprio Antônio Carlos, que, irônico, saudou uma peça de artilharia: "Respeito muito seu poder". Os irmãos José Bonifácio, Antônio Carlos e Martim Francisco foram deportados para a França.
As províncias (como eram então chamados os Estados) repudiaram veementemente a dissolução da Constituinte. A Bahia exigiu que os deputados presos fossem libertados e que o sistema constitucional fosse mantido. D. Pedro I respondeu: "Quanto à mágoa da Província pela dissolução da Assembleia, não fora menor a de seu paternal coração, quando se viu na dura e indispensável necessidade de dar ao leal e generoso povo brasileiro esse motivo de descontentamento". Mas foi em Pernambuco e no Ceará que a resistência foi maior. Os rebeldes foram reprimidos violentamente. Dezenas de líderes foram mortos. Frei Caneca foi fuzilado em janeiro de 1825, no Recife. Só a família do escritor José de Alencar perdeu oito membros na rebelião.