quarta-feira, 9 de novembro de 2022

CONVÉM ACENDER A LUZ

Enquanto Bolsonaro se tranca em seus rancores, o Centrão se abre, pela enésima vez, a experiências seminovas, pleiteando, pedindo, querendo... Como a viúva que não espera sequer o leito nupcial esfriar para substituir o finado pelo amante, a banda fisiológica do Congresso já negociam com operadores do presidente eleito.

Em diálogos subterrâneos com Arthur Lira, a equipe de Lula revela disposição para jogar o velho jogo. Nos próximos dias, o próprio Lula fará um giro por Brasília. Convém acender a luz.

No debate presidencial promovido pelo pool UOL, Folha, Band e TV Cultura, Josias de Souza questionou os dois candidatos sobre a relação com o Congresso. Perguntou como fariam para obter governabilidade a partir de 2023 sem comprar apoio legislativo, como Lula fez com o petrolão e Bolsonaro, com o orçamento secreto. 

A resposta do então candidato à reeleição foi imprestável. Mas perdeu a relevância. Lula absteve-se de falar sobre o petrolão. Incluiu no seu lero-lero apenas a perversão da gestão do rival. Vale a pena rememorar o que disse o agora presidente eleito:

"Um presidente da República, quando ele é eleito, ele governa e lida com o Congresso que foi eleito. Quem elegeu o Congresso foi o povo brasileiro. Se os deputados são bons ou não, o povo brasileiro tem responsabilidade porque indicou. Eu vou tentar confrontar essa história do orçamento secreto. Eu vou tentar criar o orçamento participativo [...]. Nós vamos pegar o orçamento e vamos mandar para o povo dar opinião, para saber o que ele quer e o que seja feito, para a gente diminuir o poder de sequestro que o centrão fez com o presidente Bolsonaro".

No momento, discute-se em Brasília a reformulação da proposta de orçamento federal para 2023. O texto enviado por Bolsonaro ao Congresso é inaceitável. Foram reservados R$ 19 bilhões para as emendas secretas do orçamento paralelo dos congressistas, mas faltou dinheiro para manter o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro e verba para pagar coisas tão essenciais quanto merenda escolar, Farmácia Popular, saúde indígena, fiscalização ambiental, manutenção de estradas e um interminável etcetera.

Ainda não se ouviu em Brasília nenhuma voz petista disposta a "questionar essa história de orçamento secreto." Nem sinal, por ora, dos defensores do "orçamento participativo". Na primeira semana após a contagem dos votos, enquanto Lula descansava numa praia baiana, seus operadores incluíram nos planos da transição as conversas com a banda bandalha do Congresso. 

Alega-se que o novo governo precisa de 308 votos na Câmara e 49 no Senado para aprovar — antes da posse de Lula — a PEC da transição, como foi batizada a emenda constitucional que promoverá os remendos emergenciais no orçamento para 2023. Em meio a conversas sigilosas e conchavos nebulosos, o Orçamento virou uma encrenca alagoana. 

O senador Renan Calheiros, incomodado com o diálogo cordial do petismo com Arthur Lira, seu adversário na política de Alagoas, levou os lábios ao trombone. Considerou "um erro político recorrer ao centrão na semana seguinte à eleição." Aliado tradicional de Lula, disse que "não podemos repetir velhos erros."

Renan sugeriu que, em vez de elaborar uma PEC, a equipe de transição deveria pleitear autorização do TCU para injetar as promessas de campanha no Orçamento por meio da abertura de créditos extraordinários. Com isso, Lula resolveria o drama emergencial sem ceder às "chantagens" do centrão. Poderia se concentrar na costura de uma frente partidária sólida, com 51 senadores e 312 deputados, para eleger o presidente da Câmara, do Senado e para aprovar as reformas necessárias".

A discussão conjuntural é bizantina. Com PEC ou com MP, o Congresso não tem como sonegar ao Brasil a aprovação dos ajustes de um orçamento que teria que ser modificado mesmo se Bolsonaro tivesse prevalecido nas urnas. Que congressista teria a desfaçatez de votar contra a continuidade da renda mínima de R$ 600? Quem ousaria defender no plenário que as escolas continuassem servindo bolachas na merenda? Qual deputado ou senador votará contra o fornecimento de remédios baratos à clientela da farmácia popular?

Enquanto o debate é incendiado por um inusitado fator alagoano, perde-se a noção do essencial. Políticos de todos os quadrantes aceitam a premissa de que Lula precisa aumentar os gastos e furar o teto de gastos em 2023 para atender compromissos eleitorais como o Bolsa Família turbinado e o reajuste do salário mínimo. Entretanto, a licença para gastar impõe certos compromissos ao presidente eleito.

Passada a fase de campanha, Lula precisa, por exemplo, divulgar o nome de um ministro da Fazenda capaz de fixar os parâmetros fiscais do novo governo. A plateia ignora os detalhes técnicos que se escondem atrás do debate sobre a falência da regra do teto de gastos na administração pública. Mas qualquer criança de cinco anos perceberá o drama fiscal quando o aumento do déficit e da dívida pública bater no orçamento doméstico na forma de inflação alta, juros escorchantes e trabalho escasso. De resto, Lula deveria se recordar das perversões pretéritas para tentar evitar escândalos futuros. 

Nas articulações sobre a governabilidade, a política costuma se desenvolver em duas dimensões. Numa, as negociações ocorrem na arena pública, sob a luz do Sol. Noutra, os interesses são trançados no escurinho.

Durante a campanha, Lula chamou o orçamento secreto de "maior bandidagem já feita em 200 anos." Acusou Arthur Lira de "comprar os votos dos deputados" com o propósito de fazer "desgraceiras". Agora, enviados do presidente eleito tricotam com Lira em conversas reservadas. O próprio Lula vai a Brasília cumprir uma agenda que incluiu encontro com Lira e assemelhados.

Tudo é muito lindo e necessário. Sem fazer política, nenhum governo sai do lugar. Mas falta responder com clareza algumas perguntas singelas. Neste novo capítulo do velho toma-lá-dá-cá, o que a turma do Centrão quer tomar do futuro governo? O que Lula se dispõe a dar? Para elucidar as dúvidas, seria conveniente acender a luz. Ficaria mais fácil descobrir se, além dos remendos orçamentários emergenciais, há sobre o balcão reformas e políticas públicas essenciais.

A boa notícia é que o fisiologismo no Congresso não aumentou depois das eleições de 2022. Continua nos mesmos 100%. A má notícia é que o Centrão — esse aglomerado político que é contra tudo ou a favor de qualquer outra coisa, desde que paguem o seu preço — não abre mão dos R$ 19 bilhões já reservados para as emendas secretas no orçamento de 2023. A péssima notícia é que os operadores da transição já não consideram absurda a hipótese de manter no ano que vem aquilo que Lula chamou de "maior bandidagem". 

Convém acender a luz.

Com Josias de Souza