sexta-feira, 19 de maio de 2023

ALI BABÁ E OS 40 LADRÕES



Depois que Alexandre de Moraes colocou Anderson Torres em liberdadeMauro Cid, que mandou dizer a Bolsonaro que não pretendia enredá-lo em seus futuros depoimentos à PF,  troca o advogado Rodrigo Roca, avesso a delações, pelo criminalista Bernardo Fenelon, especialista em delações.
 
A senha que conduziu a PF às nuvens conectadas ao celular do ex-ajudante de ordens do capetão abriu a caverna do ex-primeiro casal. Em meio a cartões de vacina falsificados e diálogos golpistas, os investigadores esbarraram na caixa registradora de Michelle Bolsonaro. Aos pouquinhos, vai sendo exposto o lado Ali Babá dos ex-inquilinos do Alvorada.
 
Numa das mensagens, Cid compara as transações à rachadinha de Zero Um. Micheque fazia compras com um cartão de crédito da amiga Rosemary Cardoso Cordeiro, e ele, Cid, pagava as faturas em dinheiro vivo, sacado em uma agência do Banco do Brasil dentro do Planalto. Para piorar, uma empresa com contratos firmados com a estatal Codevasf fez pelo menos 12 depósitos na conta do sargento Luis Marcos dos Reis (coisa de R$ 25.360), subordinado a Cid, e que, segundo a PF, o realizou pagamentos de despesas atribuídas à ex-primeira dama.

Preso numa unidade militar e cercado por indícios de fraude, Cid depôs no inquérito sobre a fraude nos cartões de vacina, reconhecendo em privado que se encontra num local bastante parecido com um buraco. E a vida ensina que a primeira regra dos buracos é singela: quando se cai dentro de um, deve-se parar de cavar. Se contar aos investigadores que apenas cumpria ordens quando entrou no sistema do Ministério da Saúde para injetar vacinas falsas nos cartões de Bolsonaro e da filha do ex-chefe, o coronel abandona a picareta e reduz o tamanho de sua pena. Se endossar a versão segundo a qual agiu por conta própria, sem o conhecimento do ex-chefe, jogará terra sobre si mesmo. Na dúvida, ele preferiu ficar em silêncio.


Observação: Até bem pouco, Cid era festejado como avis rara do bolsonarismo, um eficiente faz-tudo do então presidente. Hoje, está abandonado à própria sorte. Ao interrogar Bolsonaro 48 horas antes da inquirição de Cid, a PF ofereceu ao coronel uma oportunidade para refletir sobre o próprio futuro. Em quase três horas de interrogatório, Bolsonaro limitou-se a entoar o bordão "eu não sabia". Acomodou todas as culpas sobre os ombros de CidLançando mão dos melhores estratagemas para atingir os piores subterfúgios, o ex-mito negou a própria fama. De presidente mandão, converteu-se num coadjuvante nato.

Ficou mais difícil sustentar a tese de que Cid agiu sozinho. Notícia do Globo informa que a PF descobriu que a senha de acesso de Bolsonaro ao aplicativo ConecteSUS, que estava associado ao email de Cid, foi transferida para o coronel Marcelo Costa Câmara, que integra a equipe de oito assessores a que o ex-mandatário tem direito, mas tornou-se inviável para esse estrupício reeditar o bordão "eu não sabia." 

Por baixo das narrativas falaciosas do verdugo do Planalto, seus protetores precisam acomodar outras camadas de mentiras — como a declaração categórica do ex-mandatário feita após a batida policial em sua casa: "Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina. Ponto final" e a sinalização de que o Cid se dispõe a assumir as culpas sozinho, isentando o ex-chefe.

No tempo em que Brasília ainda tentava fazer sentido, os valores pareciam mais nítidos. Bolsonaro se considerava um deus onipresente e Cid, pau mandado do capetão, um militar cioso da hierarquia. Subitamente, a nitidez perdeu a função. Nada é o que parece. Bolsonaro virou um antilíder e o coronel puxa-saco foi brindado com a alternativa de se reposicionar em cena, de se comportar como o sujeito que reclama do barulho quando a oportunidade bate à porta.


Pintou um clima entre o bolsonarismo e a picaretagem financeira. Tornou-se difícil ouvir falar em Deus, pátria e família sem reprimir um sorriso interior. Doravante, sempre que o ex-primeiro casal escorar suas atitudes na tríade predileta do fascismo, uma voz no fundo da consciência dos brasileiros avisará: "Farsantes!" Mal comparando, o convívio com Bolsonaro é mais ou menos como o sarampo, cuja falta de cuidado deixa marcas indeléveis. 
 
Michelle já convivia com as erupções dos R$ 89 mil que Fabrício Queiroz borrifara em sua conta bancária. Surgem agora em sua biografia imaculada infecções que potencializam o caráter criminal da moléstia. São sete os pecados capitais: soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça. Madame se enroscou no oitavo, ainda não catalogado: o pecado do capital propriamente dito. Sua pose de cristã limpinha perdeu o prazo de validade. Virou um inquérito policial esperando na fila para acontecer. Os dados extraídos do celular de Cid transformam-na de coadjuvante de uma rachadinha do enteado a estrela do seu próprio escândalo financeiro. 
 
No despacho em que autorizou a extensão das quebras de sigilos de Cid a funcionários da Presidência e pessoas ligadas à ex-primeira-dama, o ministro Alexandre anotou que os dados colecionados pela PF revelaram "fortes indícios de desvio de dinheiro público, por meio da Ajudância de Ordens da Presidência da República" para pessoas indicadas pelas duas assessoras da ex-primeira-dama. Aos pouquinhos, os indícios vão se convertendo em provas duras de roer. Vêm à luz coisas que deixariam Ali Babá e os 40 ladrões ruborizados.
 
Deus, como se sabe, está em toda parte. Mas, ao sentir os odores que exalam das finanças de Michelle, o Senhor das Esferas achou melhor cuidar de outras coisas.

Com Josias de Souza