Bolsonaro é tido como líder da extrema-direita brasileira, embora esteja mais para símbolo do que para guia. Nem ele próprio acredita em tudo o que diz — a exemplo da autoproclamada alma viva mais honesta do Brasil, mas isso é outra conversa.
Quando percebeu que havia mercado para a parolagem estúpida e brutalista, o "mito" se rendeu a ela, e ela rendeu a ele e sua prole votos, dinheiro e patrimônio. Pendurado no erário desde os tempos da caserna, o ex-capitão sempre gostou mais de dinheiro que de ideologia, e desde sempre usou esta como instrumento para obter aquele.
O dublê de mau militar — como bem o definiu Ernesto Geisel — e parlamentar medíocre — como comprova a aprovação de míseros dois projetos em 27 anos no baixo clero da Câmara — tornou-se um homem de muitos milhões, fez da Presidência sua Disneylândia particular e, sob o escudo de uma impunidade quase absoluta, buscou se perpetuar no Planalto mediante um golpe Estado. As tentativas de golpe malograram, mas o golpista jamais descuidou do caixa — nem mesmo enquanto fingia lutar uma cruzada moral e patriótica.
Derrotado pelo ex-presidiário mais famoso do Brasil, o imbrochável fechou-se em copas. Encastelado no Planalto, assistiu aos protestos antidemocráticos protagonizados por fanáticos acampados em portas de quartéis. A dois dias de entregar a faixa, homiziou-se na cueca do Pateta e lá ficou até o final de março p.p. Inelegível até 2030 por decisão do TSE, posa de vítima enquanto explora seus devotos — um bando de imbecis travestidos de militantes comandados por um imbecil travestido de ex-presidente. A mais recente pilhagem rendeu R$ 17,2 milhões (resultantes, supostamente, de doações para ajudar o insuportável a pagar multas judiciais).
Se a chave da conta de Bolsonaro só foi divulgada no dia 23 de junho, as "doações" foram feitas em apenas 12 dias, o que sugere lavagem de dinheiro. Como se não bastasse, o imorrível repassou dinheiro a familiares e gastou "mais ou menos R$ 17 mil, se não me engano" em jogos na Mega-Sena (todos feitos na lotérica de um sobrinho). Faltou pouco para emular João Alves — o mais famoso dos "Anões do Orçamento" —, mas seus devotos e apoiadores, cegos pelo fanatismo ou por interesses ocultos, não pareceram constrangidos com a desculpa esfarrapada.
Ainda que que a narrativa do incomível fosse a mais pura expressão da verdade, a pergunta que se coloca é: que tipo de gente doa dinheiro a um sevandija que, além de não pagar as multas, aplica o produto da pilhagem em renda-fixa e torra o correspondente a mais de 10 salários-mínimos em jogos de loteria? Se o imprestável ficasse no Planalto por muito tempo, acabaríamos com histórias como da ex-primeira-dama das Filipinas, que se tornou célebre por colecionar mais de 3 mil pares de sapatos enquanto o povo vivia na miséria.
A operação montada no segundo turno para bloquear a chegada de eleitores do candidato petista às urnas no Nordeste é um dos fios desencapados mais temidos por advogados e aliados de Bolsonaro, e a prisão de Silvinei Vasques, ex-chefe da PRF, trouxe à tona detalhes que têm potencial para produzir um curto-circuito.
A operação montada no segundo turno para bloquear a chegada de eleitores do candidato petista às urnas no Nordeste é um dos fios desencapados mais temidos por advogados e aliados de Bolsonaro, e a prisão de Silvinei Vasques, ex-chefe da PRF, trouxe à tona detalhes que têm potencial para produzir um curto-circuito.
O circo pegou fogo. No epicentro do incêndio, uma reunião de Silvinei com a fina flor da PRF a portas fechadas. Na pauta oficial, questões triviais, como a educação física dos agentes; no mundo real, a articulação de uma operação "politicamente direcionada" para dificultar o trânsito de eleitores de Lula.
Do celular da ex-diretora de Inteligência do Ministério da Justiça, a PF extraiu uma planilha encomendada pelo ex-ministro Anderson Torres, com os municípios em que o petista obteve mais de 75% dos votos no primeiro turno. Repassados a Silvinei, esses dados serviram de bússola para a ação "politicamente direcionada" no dia da votação em segundo turno.
Silvinei e Anderson não tardam a descobrir que um dos problemas com as coisas varridas para debaixo do tapete é que o país continua vivendo em cima do tapete. Ambos mentiram na CPMI como se falassem para uma nação de bobos. Um está na cadeia. O outro amarga prisão domiciliar. Os dois se comportam como Tom e Jerry.
Silvinei e Anderson não tardam a descobrir que um dos problemas com as coisas varridas para debaixo do tapete é que o país continua vivendo em cima do tapete. Ambos mentiram na CPMI como se falassem para uma nação de bobos. Um está na cadeia. O outro amarga prisão domiciliar. Os dois se comportam como Tom e Jerry.
No primeiro depoimento, Silvinei admitiu que "o número de abordagens" feitas pela PRF no segundo turno "foi maior", mas atribuiu a anomalia a uma "operação do Ministério da Justiça". Torres declarou que a corporação agiu com "autonomia" e que ele "não tinha atribuição para vetar o planejamento". Disse ter ouvido de Silvinei que "a ação foi praticamente a mesma do primeiro turno", sem "qualquer direcionamento" político. Os dois agiram de comum acordo, segundo a PF, que quer encostar o inquérito no ex-presidente e receberia de bom grado uma colaboração — desde que o colaborador fizesse o melado escorrer para cima.
Na última sexta-feira, mandados de busca e apreensão foram cumpridos nos endereços do general Mauro Cesar Lourena Cid — pai do ex-ajudante de ordens Mauro Cesar Barbosa Cid, colega de Bolsonaro na AMAN e ex-chefe da Apex em Miami — e do célebre causídico Frederick Wassef — defensor recorrente de membros do clã Bolsonaro e ex-anfitrião do igualmente célebre Fabrício Queiroz.
A PF colheu indícios de que Cidão teria participado da venda das joias sauditas, e que teria emprestado sua conta bancária no exterior para o recebimento de valores. Seu envolvimento no furdunço leva a investigação outro patamar e mergulha o Exército no escândalo: sem embargo de as condutas serem individualizadas, a corrupção na veia de um general tido como ícone na caserna tem impacto para além de uma eventual desonestidade.
Cidinho também é alvo da Operação Lucas 12:2 ("não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido"), suspeito de desviar bens entregues por autoridades estrangeiras a representantes do Estado brasileiro, vendê-los no exterior, converter os valores em dinheiro em espécie e engordar o patrimônio pessoal do chefe do clã das rachadinhas e das mansões milionárias. Seu advogado, Bernardo Fenelon, renunciou a sua defesa por razões de "foro íntimo".
Observação: Mauro Cid (o filho) provou ser um homem de múltiplas habilidades: além de funcionar como caixa eletrônico para a ex-primeira-dama, como serviço de atendimento a oficiais golpistas para os militares e como hacker de cartões de vacinação no Ministério da Saúde, ele atuou como vendedor de joias surrupiadas. Por essas e outras, o fardado se tornou peça-chave para o deslinde de várias maracutaias envolvendo Bolsonaro et caterva. Comparado a ele, Fabrício Queiroz não passava de um simples recruta.
Cidinho cala, mas seu celular fala. E acusa Bolsonaro, sua família e aliados. O rolo do Rolex é só mais um capítulo dessa delação involuntária, mas reforça a inarredável impressão de que o biltre sempre viu a política como um bom negócio pessoal. Para quem aplicou em renda fixa os R$ 17 milhões provenientes (supostamente) de doações para pagar multas, autorizar a venda de patrimônio público como se fosse privado seria apenas mais um dia de trabalho.
O peixe, como se sabe, morre pela boca. Mas a PF descobriu que o bolsonarismo morre pelo celular. Numa tradução livre, smartphone significa telefone inteligente; nas patas de certos bolsonaristas, vira cavalo de troia tecnológico a serviço da estupidez. Alguns dos bagrinhos encrencados no 8 de Janeiro forneceram ao Judiciário as selfies que recheiam os processos, e Cidinho e seus auxiliares apagaram as mensagens que expunham o golpismo e as entranhas apodrecidas da gestão do "mito", mas se esqueceram de esvaziar a lixeira.
Cidinho cala, mas seu celular fala. E acusa Bolsonaro, sua família e aliados. O rolo do Rolex é só mais um capítulo dessa delação involuntária, mas reforça a inarredável impressão de que o biltre sempre viu a política como um bom negócio pessoal. Para quem aplicou em renda fixa os R$ 17 milhões provenientes (supostamente) de doações para pagar multas, autorizar a venda de patrimônio público como se fosse privado seria apenas mais um dia de trabalho.
O peixe, como se sabe, morre pela boca. Mas a PF descobriu que o bolsonarismo morre pelo celular. Numa tradução livre, smartphone significa telefone inteligente; nas patas de certos bolsonaristas, vira cavalo de troia tecnológico a serviço da estupidez. Alguns dos bagrinhos encrencados no 8 de Janeiro forneceram ao Judiciário as selfies que recheiam os processos, e Cidinho e seus auxiliares apagaram as mensagens que expunham o golpismo e as entranhas apodrecidas da gestão do "mito", mas se esqueceram de esvaziar a lixeira.
No dialeto do bolsonarismo, celular virou um outro nome para aquilo que os investigadores chamavam antigamente de batom na cueca. No aparelho de Cid filho, a PF pescou até a minuta de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem que visava dar suporte ao golpe, e, revirando a lixeira, chegou ao camelódromo fardado das joias.
Anderson Torres, superior hierárquico da PRF, sabia o que fazia quando simulou o extravio de seu telefone antes de retornar dos EUA e se entregar à PF. O agentes recuperaram parte dos dados na nuvem, mas uma análise do aparelho "perdido" certamente levaria a dados mais valiosos — um personagem que guarda uma minuta de golpe no armário do quarto decerto manteria um lixo valioso no celular.
O naufrágio do Titanic tornou-se a melhor metáfora para o ponto final de qualquer enredo trágico. Bolsonaro, como o maestro da orquestra da célebre embarcação, deve ter sido o primeiro a notar que um script que evolui do patriotismo épico para um reles caso de roubo de joias é o roteiro de um desastre.
A imagem mais fascinante é a dos militares deslizando pelo salão como músicos fieis de uma banda marcial a caminho do fundo. Ao arrastar para o epicentro do escândalo o general Cid, a PF mostrou que a água invadiu os trombones. O pai do filho enrolado migrou da condição de estrelado de mostruário para a de contrabandista de joias quatro estrelas.
A tradicional família militar divide a ribalta com o criminalista de estimação dos Bolsonaro, que se comporta como um bêbado que atribui o desnível acentuado do convés à qualidade do champanhe. Com as caldeiras explodindo, os fardados tocam sem desafinar, evitando incluir no fundo musical a partitura de uma delação. É como se Bolsonaro, com água pelo nariz, ordenasse à orquestra: "Toquem com brio!"
Expurgado do Poder, o ex-capitão já não pode mandar cortar o salário dos músicos. Mas eles continuam a postos, e parecem enxergar virtude na depravação. Mostram-se dispostos a executar a partitura do ex-mandatário até o último glub-glub, quando já não haverá mais botes salva-vidas à disposição.
Com Ricardo Kertzman e Josias de Souza