domingo, 13 de agosto de 2023

ATÉ O ÚLTIMO GLUB-GLUB

 

Bolsonaro é tido como líder da extrema-direita brasileira, embora esteja mais para símbolo do que para guia. Nem ele próprio acredita em tudo o que diz — a exemplo da autoproclamada alma viva mais honesta do Brasil, mas isso é outra conversa. 

Quando percebeu que havia mercado para a parolagem estúpida e brutalista, o "mito" se rendeu a ela, e ela rendeu a ele e sua prole votos, dinheiro e patrimônio. Pendurado no erário desde os tempos da caserna, o ex-capitão sempre gostou mais de dinheiro que de ideologia, e desde sempre usou esta como instrumento para obter aquele. 
 
O dublê de mau militar — como bem o definiu Ernesto Geisel — e parlamentar medíocre — como comprova a aprovação de míseros dois projetos em 27 anos no baixo clero da Câmara  tornou-se um homem de muitos milhões, fez da Presidência sua Disneylândia particular e, sob o escudo de uma impunidade quase absoluta, buscou se perpetuar no Planalto mediante um golpe Estado. As tentativas de golpe malograram, mas o golpista jamais descuidou do caixa — nem mesmo enquanto fingia lutar uma cruzada moral e patriótica. 
 
Derrotado pelo ex-presidiário mais famoso do Brasil, o imbrochável fechou-se em copas. Encastelado no Planalto, assistiu aos protestos antidemocráticos protagonizados por fanáticos acampados em portas de quartéis. A dois dias de entregar a faixa, homiziou-se na cueca do Pateta e lá ficou até o final de março p.p. Inelegível até 2030 por decisão do TSE, posa de vítima enquanto explora seus devotos  um bando de imbecis travestidos de militantes comandados por um imbecil travestido de ex-presidente. A mais recente pilhagem rendeu R$ 17,2 milhões (resultantes, supostamente, de doações para ajudar o insuportável a pagar multas judiciais). 
 
Se a chave da conta de Bolsonaro só foi divulgada no dia 23 de junho, as "doações" foram feitas em apenas 12 dias, o que sugere lavagem de dinheiro. Como se não bastasse, o imorrível repassou dinheiro a familiares e gastou "mais ou menos R$ 17 mil, se não me engano" em jogos na Mega-Sena (todos feitos na lotérica de um sobrinho). Faltou pouco para emular João Alves — o mais famoso dos "Anões do  Orçamento" —, mas seus devotos e apoiadores, cegos pelo fanatismo ou por interesses ocultos, não pareceram constrangidos com a desculpa esfarrapada. 

Ainda que que a narrativa do incomível fosse a mais pura expressão da verdade, a pergunta que se coloca é: que tipo de gente doa dinheiro a um sevandija que, além de não pagar as multas, aplica o produto da pilhagem em renda-fixa e torra o correspondente a mais de 10 salários-mínimos em jogos de loteria? Se o imprestável ficasse no Planalto por muito tempo, acabaríamos com histórias como da ex-primeira-dama das Filipinas, que se tornou célebre por colecionar mais de 3 mil pares de sapatos enquanto o povo vivia na miséria.
 
A operação montada no segundo turno para bloquear a chegada de eleitores do candidato petista às urnas no Nordeste é um dos fios desencapados mais temidos por advogados e aliados de Bolsonaro, e a prisão de Silvinei Vasques, ex-chefe da PRF, trouxe à tona detalhes que têm potencial para produzir um curto-circuito. 

O circo pegou fogo. No epicentro do incêndio, uma reunião de Silvinei com a fina flor da PRF a portas fechadas. Na pauta oficial, questões triviais, como a educação física dos agentes; no mundo real, a articulação de uma operação "politicamente direcionada" para dificultar o trânsito de eleitores de Lula

Do celular da ex-diretora de Inteligência do Ministério da Justiça, a PF extraiu uma planilha encomendada pelo ex-ministro Anderson Torres, com os municípios em que o petista obteve mais de 75% dos votos no primeiro turno. Repassados a Silvinei, esses dados serviram de bússola para a ação "politicamente direcionada" no dia da votação em segundo turno. 
 
Silvinei e Anderson não tardam a descobrir que um dos problemas com as coisas varridas para debaixo do tapete é que o país continua vivendo em cima do tapete. Ambos mentiram na CPMI como se falassem para uma nação de bobos. Um está na cadeia. O outro amarga prisão domiciliar. Os dois se comportam como Tom e Jerry

No primeiro depoimento, Silvinei admitiu que "o número de abordagens" feitas pela PRF no segundo turno "foi maior", mas atribuiu a anomalia a uma "operação do Ministério da Justiça". Torres declarou que a corporação agiu com "autonomia" e que ele "não tinha atribuição para vetar o planejamento". Disse ter ouvido de Silvinei que "a ação foi praticamente a mesma do primeiro turno", sem "qualquer direcionamento" político. Os dois agiram de comum acordo, segundo a PF, que quer encostar o inquérito no ex-presidente e receberia de bom grado uma colaboração  desde que o colaborador fizesse o melado escorrer para cima. 

Na última sexta-feira, mandados de busca e apreensão foram cumpridos nos endereços do general Mauro Cesar Lourena Cid — pai do ex-ajudante de ordens Mauro Cesar Barbosa Cid, colega de Bolsonaro na AMAN e ex-chefe da Apex em Miami — e do célebre causídico Frederick Wassef — defensor recorrente de membros do clã Bolsonaro e ex-anfitrião do igualmente célebre Fabrício Queiroz

A PF colheu indícios de que Cidão teria participado da venda das joias sauditas, e que teria emprestado sua conta bancária no exterior para o recebimento de valores. Seu envolvimento no furdunço leva a investigação outro patamar e mergulha o Exército no escândalo: sem embargo de as condutas serem individualizadas, a corrupção na veia de um general tido como ícone na caserna tem impacto para além de uma eventual desonestidade. 

Cidinho também é alvo da Operação Lucas 12:2 ("não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido"), suspeito de desviar bens entregues por autoridades estrangeiras a representantes do Estado brasileiro, vendê-los no exterior, converter os valores em dinheiro em espécie e engordar o patrimônio pessoal do chefe do clã das rachadinhas e das mansões milionárias. Seu advogado, Bernardo Fenelon, renunciou a sua defesa por razões de "foro íntimo".

Observação: Mauro Cid (o filho) provou ser um homem de múltiplas habilidades: além de funcionar como caixa eletrônico para a ex-primeira-dama, como serviço de atendimento a oficiais golpistas para os militares e como hacker de cartões de vacinação no Ministério da Saúde, ele atuou como vendedor de joias surrupiadas. Por essas e outras, o fardado se tornou peça-chave para o deslinde de várias maracutaias envolvendo Bolsonaro et caterva. Comparado a ele, Fabrício Queiroz não passava de um simples recruta. 
 
Cidinho cala, mas seu celular fala. E acusa Bolsonaro, sua família e aliados. O rolo do Rolex é só mais um capítulo dessa delação involuntária, mas reforça a inarredável impressão de que o biltre sempre viu a política como um bom negócio pessoal. Para quem aplicou em renda fixa os R$ 17 milhões provenientes (supostamente) de doações para pagar multas, autorizar a venda de patrimônio público como se fosse privado seria apenas mais um dia de trabalho.
 
O peixe, como se sabe, morre pela boca. Mas a PF descobriu que o bolsonarismo morre pelo celular. Numa tradução livre, smartphone significa telefone inteligente; nas patas de certos bolsonaristas, vira cavalo de troia tecnológico a serviço da estupidezAlguns dos bagrinhos encrencados no 8 de Janeiro forneceram ao Judiciário as selfies que recheiam os processos, e Cidinho e seus auxiliares apagaram as mensagens que expunham o golpismo e as entranhas apodrecidas da gestão do "mito", mas se esqueceram de esvaziar a lixeira. 

No dialeto do bolsonarismo, celular virou um outro nome para aquilo que os investigadores chamavam antigamente de batom na cueca. No aparelho de Cid filho, a PF pescou até a minuta de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem que visava dar suporte ao golpe, e, revirando a lixeira, chegou ao camelódromo fardado das joias. 

Anderson Torres, superior hierárquico da PRF, sabia o que fazia quando simulou o extravio de seu telefone antes de retornar dos EUA e se entregar à PF. O agentes recuperaram parte dos dados na nuvem, mas uma análise do aparelho "perdido" certamente levaria a dados mais valiosos — um personagem que guarda uma minuta de golpe no armário do quarto decerto manteria um lixo valioso no celular.
 
O naufrágio do Titanic tornou-se a melhor metáfora para o ponto final de qualquer enredo trágico. Bolsonaro, como o maestro da orquestra da célebre embarcação, deve ter sido o primeiro a notar que um script que evolui do patriotismo épico para um reles caso de roubo de joias é o roteiro de um desastre. 

A imagem mais fascinante é a dos militares deslizando pelo salão como músicos fieis de uma banda marcial a caminho do fundo. Ao arrastar para o epicentro do escândalo o general Cid, a PF mostrou que a água invadiu os trombones. O pai do filho enrolado migrou da condição de estrelado de mostruário para a de contrabandista de joias quatro estrelas

A tradicional família militar divide a ribalta com o criminalista de estimação dos Bolsonaro, que se comporta como um bêbado que atribui o desnível acentuado do convés à qualidade do champanhe. Com as caldeiras explodindo, os fardados tocam sem desafinar, evitando incluir no fundo musical a partitura de uma delação. É como se Bolsonaro, com água pelo nariz, ordenasse à orquestra: "Toquem com brio!" 

Expurgado do Poder, o ex-capitão já não pode mandar cortar o salário dos músicos. Mas eles continuam a postos, e parecem enxergar virtude na depravação. Mostram-se dispostos a executar a partitura do ex-mandatário até o último glub-glub, quando já não haverá mais botes salva-vidas à disposição.

Com Ricardo Kertzman e Josias de Souza