domingo, 27 de agosto de 2023

O FEITIÇO VIROU CONTRA O FEITICEIRO



A canoa de Bolsonaro virou, e foi ele quem deixou ela virar, conforme atestam os fatos e corroboram Mauro Cid e Walter Delgatti, dois de seus comparsas na trajetória de ilicitudes que resolveram dar com a língua nos dentes e fazer revelações que fatalmente levarão o capo di tutti i capi à prisão. E quando começa assim o efeito dominó é inevitável. Outras confissões apontando o mito dos trogloditas como mandante dos crimes contra a saúde pública, o Estado de Direito, o sistema eleitoral e a reputações alheias não tardarão.

Ainda que o Brasil seja um país onde tudo que não presta é possível, a prisão do chefe do clã das rachadinhas e mansões milionárias são favas contadas. Resta-lhe a esperança de se apresentar como vítima de perseguição para seus (muitos) sectários e, lá na frente, dar a volta por cima. Mira-se o capetão no exemplo de seu rival e sucessor, sem levar em conta as abissais diferenças entre os dois e as circunstâncias de cada caso. 

Bolsonaro e seu esbirro deixaram tantos rastros que acabaram condenando seus defensores às meias palavras. Ou a palavra nenhuma. Os advogados são compelidos a desprezar certos fatos como se fossem fatos incertos. Paulo Bueno, defensor do capitão, não se interessa pela fartura de detalhes colecionados pela PF sobre a venda clandestina de joias. Ele sustenta que seu cliente era dono dos presentes que recebeu como chefe de Estado, que devolveu as peças por excesso de zelo e trata o resto como insignificante. Cezar Bitencourt, o terceiro advogado do tenente-coronel, entrou em cena estalando de ousadia. Anunciou que seu cliente confessaria a venda das joias a mando de Bolsonaro. De repente, suas manifestações tornaram-se aguadas. Confissão virou admissão. Joias reduziram-se a um Rolex. Ordem taxativa virou um vago "resolve isso lá". E o doutor concentrou-se no relógio, como se nada mais houvesse.


A fragilidade de Bolsonaro e Cid impõe aos causídicos a estranha tarefa de medir as palavras. O defensor do capitão diz pouco. O do coronel sugere muito sem dizer coisa com coisa. Bueno sustenta que lei de 1991 dá a seu cliente o direito de vender as joias. Abster-se de dar preferência à União é mero equívoco administrativo, não peculato. Alega que acórdão do TCU não se sobrepõe à lei. As joias voaram para os Estados Unidos no avião presidencial, vendidas na surdina, recompradas clandestinamente e devolvidas às pressas. Bolsonaro nega até o óbvio: se era legal, por que tantas ilegalidades e mentiras? A defesa se abstém de dizer. A principal arma dos advogados passou a ser a régua. Medem cada palavra, mas correm o risco de aumentar o tamanho das sentenças.


Lula gozou 580 dias de férias compulsórias em Curitiba sem jamais produzir provas como as que seu antecessor fabricou contra si. A narrativa de que foi absolvido é tão estapafúrdia quando a de ser a "alma viva mais honesta do Brasil". Se o petista se safou, foi em função de supostos erros da Lava-Jato e de mudanças nas regras do jogo (feitas por togas camaradas para favorecê-lo). Bolsonaro, por sua vez, protagonizou um projeto mequetrefe de apropriação indevida do poder, cuja execução foi entregue a operadores igualmente chinfrins.

Um presidente que abre as portas do Palácio, do Ministério da Defesa e do próprio partido a um estelionatário pago por uma deputada abilolada, e ainda manda o ajudante de ordens vender presentes de Estado para embolsar o dinheiro, não deixa margem a qualquer dúvida razoável sobre sua culpabilidade, fechando o caminho de eventuais brechas legais. O imbrochável que subestimou a República, fez pouco do Brasil, desdenhou da solidez das instituições e menosprezou instâncias de controle e investigação se vê agora na iminência de pagar pelas pragas que rogou ao país.

O feitiço virou contra o feiticeiro.