sexta-feira, 10 de novembro de 2023

O POSTE SEM LUZ

 

Lula passou uma rasteira em Fernando Haddad ao avisar que o governo não vai zerar o déficit público em 2024. Ao declarar que a meta fiscal não precisa ser zero, o presidente envelheceu o recém-aprovado marco fiscal e encolheu seu ministro.

Seis meses atrás, Haddad disse que elevaria a receita sem criar impostos nem aumentar as alíquotas dos já existentes. Enxergava na renúncia fiscal uma espécie de galinha dos ovos de ouro. "O Brasil não aguenta mais tanta sangria", dizia. Agora, tenta estancar a própria sangria: Lula deixou-o menor do que Rui Costa, o tocador de obras do governo.

Visando demonstrar que tudo está sob controle, o poste convocou uma coletiva de imprensa, mas chamou a meta fiscal de “sua”  o tipo de deslize verbal que Freud adoraria analisar. Desautorizado, irritado e sem ter o que mostrar após dez meses no cargo, perdeu a fleuma: disparou um "querida, vai fazer seu trabalho" para uma repórter e um "querido, se você quiser me entender, bem, se não quiser me entender, bem" para outro jornalista. 

Haddad precisa encontrar uma estratégia de desembarque da meta fiscal que preserve o pouco capital político que lhe resta. Entre traições internas e a crescente dificuldade com o Congresso, causada pelas frequentes falas despirocadas de seu senhor, o vassalo acabou encurralado a ponto de seu principal aliado, atualmente, ser Arthur Lira (que alertou Lula para as insatisfações do Congresso com emissários do governo, mas poupou críticas ao ministro).
 
Ninguém achava que a ideia de zerar o déficit sobreviveria por muito mais tempo. Em agosto, uma centena de economistas ouvidos pelo Boletim Focus deixou evidente essa expectativa. No mês seguinte, o relator do projeto de LDO na Câmara salientou que sem mudança na meta fiscal será impossível evitar o contingenciamento de gastos em 2024 (pesadelo de qualquer governo em ano eleitoral). A questão era como a ficção do déficit zero seria abandonada, e poucos métodos poderiam ser piores do que o empregado por Lula.
 
Além de desferir uma canelada sem propósito no mercado financeiro "ganancioso demais" (como se a Faria Lima tivesse inventado o arcabouço e as votações), Lula imolou em praça pública um subordinado que sempre lhe foi submisso e que vinha conquistando alguma boa vontade em ambientes onde petistas não são lá muito bem-vistos. 

A resposta do mercado à reação passivo-agressiva do ministro foi clara, com juros futuros e dólar em alta e bolsa de valores em queda. No Copom, a resposta foi discreta, mas não ambígua: se o governo indicar que abandonou de vez a responsabilidade fiscal, o ritmo de cortes da Selic poderá ser alterado.
 
Algumas alas do PT consideram Haddad "tucano demais" (embora essa seja sua maior qualidade), mas o poste ganhou pontos com o criador por tê-lo visitado regularmente durante as férias compulsórias deste, na carceragem da PF em Curitiba. 

Gente experiente do Congresso nunca achou que a criatura estava blindada contra traições, mas o episódio do dia 27 expos publicamente o limite do respeito de Lula por alguém que lhe serviu de preposto no pleito de 2018, mesmo sabendo que, em caso de vitória, seria um simples bonifrate. 

Observação: Ao pedir publicamente "apoio político", Haddad deixou claro que já o perdeu dentro do PT. Não "pegará bem" para Lula demitir, aos 11 meses de governo, um subalterno cuja atuação tem sido aplaudida pelo Congresso e pelo mercado financeiro. Mas já despontam no horizonte alguns sinais de descontentamento com a situação econômica, e Lula não tem tempo — como tinha no primeiro mandato — de esperar pelos frutos da contenção de gastos. Em busca do sucesso imediato, sua excelência ignora os ensinamentos do Conselheiro Acácio e dá de ombros para as consequências futuras.

"Haddad conseguia passar alguma tranquilidade ao mercado, mas nunca deixou de ser um poste", disse reservadamente um líder governista à Crusoé. O agradecimento do suserano veio na forma de constrangimento público. Resta saber como o vassalo se comportará no papel de poste sem luz.