sábado, 11 de novembro de 2023

QUEM FOI QUE INVENTOU O BRASIL... (FINAL)

 
Reconheça-se o esforço federal no reforço da vigilância nos portos, aeroportos e fronteiras terrestres para inibir a entrada e o trânsito de drogas no país. Providências são bem-vindas, embora na atual conjuntura sejam insuficientes e, por isso, cercadas de desconfiança sobre sua eficácia. 
Com a decretação da Garantia de Lei e da Ordem, o governo simula a existência de uma política para enfrentar a crise de uma segurança pública em colapso. Quem sofre os efeitos no cotidiano, contudo, não tem obrigação de fingir que acredita. O convívio com o Estado desorganizado frente ao crime organizado não permite a benevolência. 
A GLO é uma ação temporária já tentada em moldes diversos e com o mesmo recurso às Forças Armadas duas dezenas de vezes nos últimos 30 anos. De lá para cá, a situação só piorou. E muito. Aos territórios dominados pelo tráfico acrescentaram-se os controlados pelas milícias, notadamente no Rio de Janeiro, onde o poder público foi cooptado pelo crime e infiltrado na política, na polícia e na Justiça. 
A condição é de "metástase", na definição precisa de Raul Jungmann, que viu a coisa de perto quando ocupou tanto a pasta da Segurança Pública quanto o Ministério da Defesa, e essa metástase se espalha pelo país de tal forma que já se configura em emergência nacional a ameaçar a higidez do Estado de Direito. Mas nisso as autoridades não tocam, preferindo fechar os olhos à necessidade de limpeza. 
Os discursos em defesa da democracia feitos pelos representantes dos Poderes não terão credibilidade nem efetividade enquanto na ala dos representados houver cidadãos reféns do terror. A circunstância fere a soberania estatal e subverte a ordem institucional. Não dá mais para suportar.

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Séculos antes de Leif içar suas velas (vide capítulo anterior), circulavam no Velho Mundo lendas envolvendo grandes terras desconhecidas do outro lado do Atlântico. Na obra Bibliotheca Historica, escrita no século I a.C., o romano Diodorus Siculus conta que o capitão fenício Himilcon singrou o "Oceano Ocidental" por volta de 500 a.C. e chegou a uma "grande terra, fértil e de clima delicioso", e que descoberta foi mantida em segredo para evitar que outros povos explorassem o lugar.
 
Rumores de que um misterioso país do ocidente era uma espécie de paraíso terreno, imagem do Éden descrito na Bíblia, começaram a circular no início da Idade Média. Entre os celtas da Irlanda, a terra encantada ganhou o nome de Hy Brazil — lembrando que o nome dado posteriormente a Pindorama deriva do termo fenício "barzil" — que significava "ferro" — ou do celta "bress" — raiz da palavra inglesa bless, que significa abençoar —, nada tendo a ver, portanto, com a madeira "da cor da brasa" que abundava no litoral do Nordeste e de cuja casca os portugueses extraíam a tinta vermelha usada para tingir as vestes mais luxuosas de Lisboa.
 
Um descobridor alternativo das Américas pode ter sido um religioso celta em busca do paraíso terrestre: A Navegação de São Brandão, escrita na Irlanda por volta do ano 900, conta a história de um monge irlandês que em 556 teria partido pelas águas do Atlântico em um currach (pequeno barco de madeira, coberto de peles e usado por pescadores). Reza a lenda que São Brandão, com uma pequena tripulação de monges-marinheiros, encontrou a fabulosa terra de Hy Brazil, "cheia de bosques e grandes rios recheados de peixes", e voltou à Irlanda para contar a história.
 
Inobstante a existência de provas irrefutáveis de que fenícios ou celtas tenham estado no Novo Mundo, as chances são consideráveis. A corrente Sul-Equatorial (a mesma que pode ter trazido os chineses ao Brasil) seria o caminho mais provável para exploradores antigos, que, inclusive, dispunham de navios capazes de carregar mais mantimentos que as naus e caravelas portuguesas. Considerando que eles navegaram pela costa da África até o século IV a.C., se um de seus barcos que tivesse entrado por acaso na corrente Sul-Equatorial seria levado diretamente para as praias de Pernambuco. E o mesmo caminho pode ter sido seguido por celtas, romanos e árabes. 
 
Em Historia General de las Indias e de las Tierras del Mar Oceano, escrito em 1535, o espanhol Gonçalo Fernandes de Oviedo assim descreve o espírito de sua época: "E Deus quis que o Novo Mundo fosse descoberto pelos reis cristãos e seus vassalos, e que eles aceitassem alegremente o trabalho de converter e conquistar os idólatras. Bendito seja o Senhor!". Eram tempos em que os espanhóis invadiam e dominavam as terras descobertas por Colombo "para maior Glória de Deus", e foram os próprios conquistadores que começaram a transformar sua aventura em história: Oviedo, um fidalgo que veio às Américas para colonizar, foi o primeiro "cronista de Índias" da coroa espanhola — ou seja, o historiador oficial encarregado de justificar e glorificar a conquista. A "descoberta" foi descrita como uma vontade divina, e os índios, como infiéis sem civilização que, a exemplo dos negros africanos, deviam se converter ou virar escravos.
 
Cronistas da época também esculpiram a versão de que nenhum outro "povo civilizado" alcançara o Novo Mundo antes dos ibéricos — já que o dono é quem chegou primeiro, e a ele cabe o direito de ficar rico com isso. O mesmo raciocínio foi adotado dois séculos depois pelos colonizadores ingleses da Austrália: embora a ilha já tivesse sido avistada pelos portugueses em 1522 e pelos holandeses em 1614 — e talvez pelos chineses bem antes disso, até porque, de todos os possíveis descobridores da Oceania, só eles vestiam "longas túnicas", como os misteriosos visitantes das lendas aborígenes e maoris —, o "descobridor oficial" foi o britânico James Cook, que tomou posse da terra em nome da Coroa inglesa(vide capítulos anteriores).
 
No Brasil, a transformação do apagado Cabral em herói só ocorreu no século XIX. Até então, livros de história mal falavam nele. Em Portugal, também era pouco lembrado: a casa que pertencera a sua família, em Santarém, ficou abandonada por séculos e chegou a virar um prostíbulo. Colombo também permaneceu nas sombras por séculos — e só foi reabilitado em 1866, quando americanos de origem latina criaram o Columbus Day, visando destacar seu na colonização da América numa época em que imigrantes latinos eram desprezados pela elite anglo-saxã. Com o tempo, a celebração da "descoberta" foi exportada para a América Central e do Sul pelos "vencedores" europeus, brancos e cristãos. 
 
Observação: Se a história tivesse sido escrita pelos perdedores, esses relatos certamente adquiririam um tom apocalíptico. No México e no Peru, sacerdotes indígenas decretavam que seus deuses nativos estavam mortos e anunciavam o fim da civilização. O que os "descobertos" pensavam sobre a tal Idade dos Descobrimentos pode ser resumido por um único verso de um poema escrito no México na aurora do Novo Mundo: "Oh meus filhos, em que tempos detestáveis vocês foram nascer!"
 
Discutir se os primeiros a chegar no Novo Mundo eram chineses, nórdicos ou os espanhóis guarda um certo equívoco histórico. Até porque as Américas já haviam sido descobertas pelo menos 15 mil anos antes, e a Oceania, cerca de 46 mil! Quando os ancestrais dos portugueses ainda viviam na Pré-História, os primeiros ancestrais daqueles que os ingleses batizaram de aborígenes chegaram à Oceania caminhando por terra entre as ilhas do Pacífico e o litoral da Ásia. Em 1999, o arqueólogo brasileiro Walter Neves examinou um crânio feminino encontrado em Minas Gerais e descobriu feições aborígenes. O fóssil foi batizado de Luzia e data de 12 mil anos atrás. 
 
Os tataravôs de Luzia devem ter chegado à América vindos do Sudeste Asiático. Já os ancestrais dos nossos tupiniquins, dos astecas mexicanos e dos apaches dos EUA só começaram a povoar o Novo Mundo no século X a. C., vindos da Sibéria pelo Estreito de Bering. Como o interior da América do Norte estava congelado naquela época, os "prototupis" navegaram até a América Central e, a partir de lá, desbravaram o interior, chegando até os confins da Terra do Fogo. 
 
Em face do exposto, o Brasil e as Américas foram descobertos várias vezes ao longo dos séculos.
 
Com Superinteressante