sábado, 16 de dezembro de 2023

ESPERTEZA QUANDO É MUITA ENGOLE O DONO

 

O Planalto moveu mundos e (principalmente) fundos para emplacar Flávio Dino no STF e Paulo Gonet na PGR. Na sabatina, o candidato a procurador-geral abusou da embromação para alcançar o subterfúgio de falar por dez horas sem dizer as coisas — a desconversa atingiu o ápice quando ele foi questionado sobre como pretende lidar com o inquérito das fake news. "Não sei o que está acontecendo ali", declarou a alturas tantas, e, revelando-se um procurador desprovido de curiosidade, acrescentou: "Não me caberia buscar conhecer esse inquérito antes de ser nomeado".

Gonet não precisaria conhecer o conteúdo para dizer meia dúzia de palavras sobre a forma do inquérito infinito que foi aberto em 2019 por Dias Toffoli (à revelia da Procuradoria) para apurar ataques ao Supremo. Não fosse a necessidade de fazer média com Alexandre de Moraes, um dos padrinhos de sua indicação, o procurador poderia ter dito que, em algum momento, a anormalidade processual que a insanidade do bolsonarismo normalizou precisa ter fim. De resto, o grande perigo da meia verdade é o orador dizer exatamente a metade mentirosa. Como representante da Procuradoria no TSE, Gonet teve acesso a provas compartilhas pelo STF em ação que pedia a cabeça de Bolsonaro por disparar mentiras via WhatsApp, e votou contra a cassação. 
 
Como o sapo de Guimarães Rosa, o procurador não pulou entre a desconexão e a imprecisão por boniteza, mas por precisão. Quando quis, soou claro. Ao ouvir o senador Alessandro Vieira dizer que Gilmar Mendes, outro que o apadrinhou junto a Lula, é "carente do mínimo pudor ético", saltou: "O ministro Gilmar é honrado, pessoa dedicada ao bem", deixando nítido que 1) é leal aos amigos; 2) chega ao topo da carreira como procurador-geral de uma república aleatória de Marte; 3) a tergiversação faz sucesso no Senado: o indicado precisava de 41 votos e obteve o aval de 65 dos 77 senadores presentes. 
 
Velha raposa da política brasileira, Tancredo Neves ensinou que esperteza, quando é muita, engole o dono. E a diferença entre a esperteza e a estupidez é que a esperteza tem limites. Menos de 24 horas depois da aprovação de Gonet por 85% dos senadores presentes — graças à adesão da bancada bolsonarista — o bolsonarismo se deu conta de que, além de realizar o sonho do indicado, pode ter realizado o próprio pesadelo. Ao se despedir da função de representante da Procuradoria no TSE, Gonet se desmanchou em elogios a Alexandre de Moraes, que, junto com Gilmar Mendes, apadrinhou sua indicação. 

Durante a sabatina, o procurador se contrapor ao inquérito das fake news, convertido por Moraes numa espécie de excursão de Bolsonaro e seus devotos pelos nove círculos do inferno de Dante. Resumo da ópera: a onda de votos dados a Gonet para constranger Dino — que obteve apenas seis votos além do necessário — levou os bolsonaristas à praia de Xandão, pois caberá ao novo PGR transformar em denúncia as provas reunidas nos processos relatados pelo ministro no Supremo. 
 
Um dia depois de festejar como vitória a aprovação dos substitutos de Rosa Weber e Augusto Aras, Lula amargou derrotas em lote no Congresso, que derrubou seus vetos ao PL que prorrogou até 2027 a desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia e à proposta que que ressuscitou o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O governo operava nos bastidores para adiar para o próximo ano a análise dos vetos, e Haddad pedia tempo para colocar em pé uma alternativa à desoneração da folha. Liderados por Arthur Lira, o imperador da Câmara, os parlamentares ameaçaram bloquear a análise do pacote de projetos que compõem a agenda do ministro da Fazenda. 
 
Para salvar o dedo tributário do governo, Lula viu-se compelido a entregar os anéis dos vetos e a fechar os olhos para o motim de parlamentares do Centrão cujos partidos controlam cofres ministeriais. Aliados hipotéticos ajudaram a derrubar os vetos de um presidente que supostamente deveriam apoiar. Como se fosse pouco, o governo foi obrigado a remunerar a infidelidade liberando emendas orçamentárias pendentes de pagamento em 2023. Para piorar, o Congresso derrubou também o veto presidencial ao trecho do marco fiscal que permitia à Fazenda bloquear emendas penduradas no Orçamento de 2024 por comissões do Legislativo, impedindo o Planalto de bloquear R$ 11 bilhões em emendas no Ano Novo.
 
Pela Constituição, o regime de governo brasileiro é presidencialista; na prática, os congressistas impõem a Lula um parlamentarismo orçamentário.

Com Josias de Souza