Coerência e maus políticos não costumam andar de mãos dadas, mas por vezes parecem seguir em direções opostas. Três dias depois de patrocinar um ato na praça dos Três Poderes para marcar a passagem dos idos de 8 de janeiro de 2023, o PT de Lula se fez representar por quatro correligionários na fraudulenta posse do ditador venezuelano Nicolás Maduro.
Reescrever a história na galeria dos presidentes no Palácio do Planalto, como propôs Lula no afã de se comunicar mais e sobre qualquer tema, seria a contratação de um caso complicado no âmbito das notícias falsas que o governo se dispõe a combater com vigor em decorrência da nova orientação da Meta sobre moderação de postagens em suas plataformas. Levada adiante a ideia de incluir informações sobre o contexto das épocas dos mandatários e mantida a fidelidade aos fatos sem incorrer no perigoso terreno da mentira deslavada, Lula, Dilma, o PT e parceiros de jornada (alguns hoje na oposição) estariam em maus lençóis, pois teriam de ser relatados os acontecimentos relativos ao mensalão. Se fosse para contextualizar, como cobrou o presidente, seria necessário contar em detalhes precisos as razões pelas quais Dilma levou o país ao desastre da recessão — os supostos equívocos da Lava-Jato não elidem os prejuízos causados à Petrobras e ao Enraio pelos desmandos na petrolífera.
Diante da fotografia de Michel Temer, Lula reivindicou a versão de que ele não foi eleito e assumiu a cadeira pós-impeachment mediante um golpe de Estado. Mas o emedebista foi eleito na chapa de Dilma e, portanto, era o primeiro na linha de sucessão. Como se vê, melhor deixar os acontecimentos entregues ao julgamento das incoerências da história real para absolvê-los ou condená-los.
Distorcer a verdade é grave na oposição, mas, quando parte de governos, o bem solapado é a credibilidade, que bate direto na popularidade. As pesquisas de opinião mostram contínua perda de aprovação e constante aumento de desaprovação do governo e do desempenho de Lula, e o sucesso do PT nas próximas eleições (não só na disputa pelo Planalto, mas também nas eleições de governadores, deputados e senadores — depende diretamente da inversão dessa curva. O governo detém maior poder e mais instrumentos e visibilidade frente à oposição para emplacar sua narrativa, mas até agora não conseguiu soar convincente.
Se esperava o ambiente de doçura da época em que seu oponente era o PSDB, Lula não sabia com quem estava lidando ou se superestimou, ignorando a realidade tanto sob o aspecto das mudanças na sociedade quanto do ponto de vista do enfrentamento aos adversários. O recente episódio do Pix — mal comunicado e pior ainda cancelado — é um resumo dessa história em que uma instrução burocrática da Receita se transforma numa crise que escancara a fragilidade de um governo cheio de instrumentos de poder, mas incompetente no manejo das armas. Uma correção de rumos poderia começar pela busca de uma resposta à seguinte pergunta: por que as pessoas estão mais dispostas a acreditar menos no presidente da República do que num deputado lacrador, cujo viés caricato já o fez subir à tribuna de peruca loura para ridicularizar pessoas trans?
As jogadas trapaceiras atraem, mas não fazem o serviço sozinhas. Precisam da ajuda de um terreno fértil para vicejar. No caso, a falta de confiança plantada por um governo que não sabe tirar proveito das vantagens de ser situação e, para complicar, fala aos integrantes do grupo "nós" e deixa entregues à boa sorte da oposição os incluídos na categoria "eles", aos quais se reserva o tratamento de cidadãos de segunda classe.
Para um governo que tem atraído desconfiança, abrir oficialmente a temporada de sucessão ou reeleição com dois anos de mandato pela frente antecipa o "fim" da gestão em curso, alimenta disputas internas, dá mais espaço para a oposição atuar sem ser acusada de só querer atrapalhar o governo devido a interesses de palanque e deixa à vontade os governistas de ocasião que por conveniência ainda não tenham explicitado a intenção de, mais adiante, pular do barco.
Lula não parece disposto a seguir os ditames da cartilha política tradicional. Já aventou a hipótese de não concorrer à reeleição devido a problemas de saúde ou ao imponderável. A decisão, disse, está "nas mãos de Deus" — conhecendo a avaliação do xamã petista a respeito de si, sabemos a quem ele se refere quando alude ao divino. Talvez esteja repetindo o jogo feito em outras ocasiões, disseminando dúvida sobre se disputará ou não a próxima eleição a fim de alimentar no PT, temeroso da derrota, a unidade em torno dele e desestimular outras candidaturas no partido.
A questão é que, na atual conjuntura, Lula corre o risco de jogar com cartas descartadas do baralho pela passagem do tempo e mudança nas circunstâncias, pois ele, o PT, a oposição e os anseios dos brasileiros não são mais os mesmos.