... NÃO PELA CAPACIDADE, MAS PELA QUANTIDADE.
Em Ensaio sobre a cegueira, o escritor português José Saramago — Nobel de Literatura em 1998 — elencou diversas frases que poderiam descrever nosso surreal cotidiano. Entre elas, eu detaco: 1) "se queres ser cego, sê-lo-ás"; 2) "a pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente"; 3) "a cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu, não há nada que se possa fazer a respeito."
A cegueira pode ser congênita ou adquirida, reversível ou irreversível, mas, metaforicamente falando, "o pior cego é aquele que não quer enxergar". É fato que os efeitos tendem a desaparecer quando se lhes suprime a causa, mas argumentar com quem acredita nas próprias mentiras é o mesmo que dar remédio a um morto.
CONTINUA DEPOIS DA POLÍTICA
O Banco Master é um daqueles escândalos que envolve tanta gente, mas tanta gente, que mal nasce e já há um rosário de voluntários se propondo a assar uma pizza em sua homenagem, e as ações de Toffoli, como uma acareação fora de hora entre o dono do banco e o diretor de fiscalização do Banco Central cheiram a marguerita.
O ministro não conseguiria extinguir a liquidação do banco, que morreu bem antes de ser enterrado pelo BC, mas pode livrar a cara de Daniel Vorcaro e garantir que ele mantenha o bico fechado, já que a canto dessa ave, em forma de delação, levaria ao apocalipse em Brasília.
Faria bem ao país se o caso fosse apurado dentro da lei e longe da promiscuidade, mas o problema é o de sempre: a instrumentalização para um lado ou para o outro do resultados de investigações. Além disso, tudo indica que muita gente tem culpa no cartório, mas o sistema nunca age por contra própria e sempre se protege.
Em outras palavras, um crime dessa magnitude não se sustenta sem apoio político. Daniel Vorcaro construiu ou comprou amizades em um espectro ideológico amplo. Ao contrário de Mauro Cid, que era de Jair, Vorcaro é de muitos.
Se a investigação sobre o golpe expôs o projeto autoritário de um grupo político, o caso Master tem condições de escancarar o modo de financiamento de parte da política brasileira, o condomínio de interesses que transforma banco em máquina de fabricar dinheiro público para campanhas, consultorias de fachada e patrimônio oculto em paraíso fiscal.
Claro, tudo isso depende de as instituições estarem dispostas a ir até o fim. A experiência de delações passadas mostra que, no Brasil, o sistema político tem uma capacidade impressionante de metabolizar escândalos sem se depurar. Não falta advogado caro, voto em tribunal superior ou narrativa patriótica para transformar propina em "erro contábil" e fraude em "risco de mercado".
Num país em que banqueiro é tratado como gênio disruptivo mesmo quando vende vento por bilhões, talvez seja simbólico que a maior bomba não esteja em instalações militares, mas num banco em liquidação.
Como permanecer à margem da vida pública era sinal de ignorância, quem não contribuía para os debates políticos era considerado absolutamente inútil. Nesse contexto, a palavra "idiota" adquiriu a desdenhosa conotação negativa que a acompanha até hoje — segundo o Michaelis, "idiota" é alguém que "sofre de idiotia, que demonstra falta de inteligência, de discernimento ou de bom senso, estúpido, imbecil, tolo etc."
No início do século passado, os psicólogos Alfred Binet e Theodore Simon criaram o primeiro teste de inteligência moderno, que aferia o QI com base na capacidade das crianças de realizar tarefas como apontar para o nariz e contar moedas. Mais adiante, pessoas com quociente intelectual superior a 70 passaram a ser consideradas "normais", e aquelas que superassem 130, "superdotadas". Para lidar com pessoas com QI inferior a 70, criou-se uma nomenclatura segundo a qual um adulto com idade mental inferior a 3 anos foi rotulado de "idiota"; entre 3 e 7, de "imbecil"; e entre 7 e 10, de "débil mental".
A exemplo do que ocorreu com "imbecil", o termo "idiota" passou a ser usado em contextos jurídicos e psiquiátricos para descrever graus de deficiência psíquica — e daí a se tornar insultuoso foi um passo. Algumas culturas deixaram de usar o termo por considerá-lo ofensivo, mas ele continua figurando no Diccionario de la lengua española, da Real Academia Española, com o sentido de "transtorno caracterizado por uma deficiência muito profunda das faculdades mentais".
Segundo Walter C. Parker, professor emérito da Universidade de Washington, a antiga etimologia pode ser uma ferramenta valiosa para uma compreensão contemporânea da democracia e da cidadania: "idiota é alguém cuja vida privada é sua única preocupação, alguém que não toma iniciativa na política, alguém imaturo, com desenvolvimento truncado, que pode ter vida social, mas não vida pública", diz ele.
Já para a historiadora e filósofa Hannah Arendt, todos podemos ter uma vida social — com nossos amigos e familiares, redes sociais, trabalho, lazer — sem necessariamente termos uma vida pública (ou política). De acordo com ela, "o ideal da democracia liberal é que o povo participe, estabelecendo o governo e criando as regras que o defendam do tipo de vida pública que não deseja".
O idiota rejeita tudo isso. Ele simplesmente se enterra na sua vida privada e na sua vida social, permitindo que populistas, demagogos e aproveitadores da pior espécie assumam o poder. Apesar de viver num mundo em que as pessoas têm meios de acesso à informação, ele acredita mais nas versões do que nos fatos, o que resulta num terreno fértil — e muito perigoso — para a demagogia. E daí para a polarização é um passo.
Atribui-se a Nelson Rodrigues a máxima segundo a qual os idiotas vão dominar o mundo, não por capacidade, mas pela quantidade. A julgar pelo comportamento dos eleitores, que fazem a cada dois anos, por ignorância, o que Pandora fez, por curiosidade, uma única vez, nada indica que haja luz no fim desse túnel.
E assim seguimos: com cada vez mais idiotas nas redes, no Congresso, no poder. No fim das contas, a democracia pode até sobreviver aos canalhas, mas dificilmente resistirá aos idiotas — esses, afinal, estão por toda parte, até mesmo aqui, lendo este texto. Ou não.
