As coisas seriam relativamente simples no Brasil se todas as
preocupações, dúvidas e problemas a resolver se resumissem ao novo governo do
presidente Jair Bolsonaro. Mas a
vida nem sempre nos dá a oportunidade de lidar só com uma questão de cada vez.
Além de tudo o que precisa dar certo aqui dentro, hoje em dia é preciso
encarar, também, uma quantidade ainda maior de coisas que têm de dar certo lá
fora — e essas coisas não parecem estar a caminho de acabar bem.
É uma sinuca, no caso particular do Brasil, onde o governo Bolsonaro se declara disposto a fazer o
contrário do que o pensamento mundial recomenda para resolver os problemas do
universo. Do outro lado, o consenso ora em formação entre os intelectuais,
burocratas, governantes e outros “influenciadores” da vida diária do primeiro
mundo demonstra um aberto horror a tudo o que o governo brasileiro imagina que
vai fazer nos próximos quatro anos.
De Bolsonaro já
sabemos o que é preciso saber. Do outro lado, porém, o que existe é uma charada em construção. Quando você
começa a achar que entendeu alguma coisa na lista de deveres a ser obedecida
hoje por pessoas e nações, os deveres mudam, ou entram em choque entre si, ou
exigem ações que você não sabe como executar.
Não é fácil enxergar com clareza no meio desse nevoeiro. Dá
para dizer, em todo caso, que o grande traço de união entre as diversas seitas
do novo pensamento é a certeza de que a mãe de todos os pecados do mundo de
hoje é a falta de igualdade — tanto entre as pessoas, individualmente, quanto
entre as nações. Tudo que há de errado na vida atual se deve, de uma forma ou
de outra, à desigualdade; por via de consequência, de acordo com as crenças
básicas do consenso mundial que está se formando no mundo rico, a redução ou a
eliminação das diferenças levará à solução de todos os problemas que estão aí e
não sabemos como resolver.
Dos quebra-quebras em Paris ao derretimento das geleiras no
sul da Patagônia, das guerras tribais na África, massacres de civis na Síria e
fomo no Congo, nada disso tem alguma relação com as forças e governos que
provocam essas desgraças. São, pelo novo sistema de pensar o universo,
resultado da desigualdade e, portanto, têm de ser curadas com mais igualdade.
Imigração ilegal em massa para os países bem sucedidos? Escassez de água?
Emissões de carbono? É tudo mais ou menos a mesma coisa. Se o mundo fosse mais
igual, nada disso existiria.
Nada mais fácil, hoje em dia, do que encontrar combatentes
da igualdade. Estão por toda a parte. Em geral, acham que a redução do número
de pobres se fará através da redução do número de ricos, e nunca da criação de
riqueza entre os pobres. Têm uma mal definida hostilidade ao progresso, visto
que o progresso não conseguiu eliminar a desigualdade; acham que mais
eletricidade ou mais estradas, por exemplo, trazem benefícios desiguais, e
portanto são desaconselháveis, sobretudo quando você já tem as duas.
O New York Times e outros centros da nova
inteligência mundial estão convencidos, por exemplo, de que praticamente toda a
produção da agricultura brasileira poderia ser substituída no futuro, e com
vantagens, pelo consumo de insetos, capazes de fornecer todos os nutrientes
necessários ao organismo humano. Com isso, seria possível eliminar fazendas
nocivas ao meio ambiente, que hoje desperdiçam com a produção de alimentos
terras que deveriam estar destinadas à florestas. Além disso, utilizam
“agrotóxicos” e, eventualmente, perturbam a vida indígena. É mais ou menos a
mesma visão que atribui aos “direitos dos animais” importância equivalente aos
direitos humanos — isso para não falar nos direitos dos vegetais e da camada de
gelo do Polo Norte. De modo geral, consideram a sobrevivência do meio ambiente
mais importante que a sobrevivência das pessoas de carne e osso. Numa espécie
de cavalo-de-pau filosófico, acham natural que os recursos naturais não devam
ser utilizados em favor do bem estar humano; ao contrário, estão convencidos
que é obrigação do homem e dos governos não tocar em nada que esteja presente
na natureza.
Nada disso parece ter alguma coisa a ver com a redução das
desigualdades — mas o fato é que todas essas crenças são apresentados como
parte do mesmo pacote de salvação do mundo que vai sendo embrulhado hoje em dia
por funcionários de burocracias como a ONU, Comissão Europeia e outros organismos
internacionais, governos de países ricos, universidades do primeiro mundo, a
mídia em geral, o cantor Bono Vox e
por aí afora. Há bem estar na Alemanha, por exemplo, e miséria na África? A
solução é abrir a Alemanha à imigração dos africanos — onde se espera que
passem a desfrutar da mesma prosperidade sem ter feito os últimos 100 anos de
trabalho que os alemães fizeram para chegar até onde estão hoje. É essa, por
sinal, a grande ideia que sustentou a aprovação do recente acordo internacional
declarando que todos os habitantes do planeta têm agora o direito legal de
imigrar para o país que quiserem.
Distribuir a fortuna dos ricos parece ser uma ótima ideia
até você ver que só dá para fazer essa distribuição uma vez — depois que é
consumida, a riqueza acaba, e é preciso criar outra em seu lugar para continuar
havendo alguma coisa a distribuir. Outro problema é a tecnologia — quanto mais
progresso se cria, mais se aumenta a desigualdade. Profissões inteiras vão se
tornando obsoletas por conta dos avanços da inteligência artificial, da
impressão em terceira dimensão, da robotização e outras mudanças desagregadoras
do mundo profissional como ele é hoje. Para que pilotos de jato se os aviões
voarão sozinhos, e com muito maior segurança, de Nova York a Tóquio? Para que
médicos, se o computador vai fazer um transplante de coração melhor do que
eles? Para que o marceneiro, se a impressão em 3D lhe entrega sua cadeira pronta
e sem defeito nenhum?
É um mundo no qual só as pessoas com alto grau de
conhecimento serão realmente cidadãos de primeira classe. Por mais que as leis
digam que todos são iguais, e por mais que as elites pensantes escrevam
programas estabelecendo regras de igualdade, as diferenças estarão cada vez
mais evidentes. É para essas realidades que o Brasil tem de se preparar. Será
preciso, nesta caminhada, contar com ideias muito melhores do que as que
apareceram até agora.
Versão resumida do artigo de J.R. Guzzo publicado na edição impressa de Veja desta semana.