terça-feira, 10 de setembro de 2019

O GORDO E O POLITICAMENTE CORRETO


Inicio esta postagem lembrando que nosso Blog comemorou mais um aniversário na última segunda-feira, 9. "Comemorou" é modo de dizer, pois não houve festa, bolo ou champanhe. Nem mesmo uma simples remissão deste blogueiro à efeméride — acho que foi a segunda vez em 13 anos que a data me passou despercebida. A quem interessar possa, as 4.280 postagens publicadas desde 2006 continuam acessíveis. Basta retroceder pelas páginas, valer-se do campo "Arquivo do Blog" (no final da coluna à direita) ou digitar as palavras-chave na caixa de buscas. A ferramenta de pesquisas não é grande coisa, mas ajuda a localizar posts sobre temas específicos. Dito isso, vamos em frente.

O tema de hoje foge um pouco ao nosso trivial, mas resolvi abordá-lo depois de ler a coluna de Walcyr Carrasco em Veja desta semana. Isso porque sempre achei um saco essa coisa de "patrulha do politicamente correto". Afinal, desde quando trocar o nome dos bois transforma uma rês capenga num garanhão premiado? Por que diabos é ofensivo chamar de "gordo" alguém que pesa 140 quilos? Ou de "surdo" alguém que não ouve? Referir-se a este último de "deficiente auditivo" o levaria a ouvir melhor? No frigir do ovos, nem sei mais como devo me referir a pessoas da raça negra. "Cidadão de cor"? "Afrodescendente"? Aliás, alguém já viu um branco se ofender ao ser chamado de... branco?

Antes passar à crônica do Walcyr, dedico algumas linhas a outra matéria, publicada nessa mesma edição de Veja, que foca Os Trapalhões à luz da prepotência do líder do grupo, o "Didi" — personagem incorporada pelo palhaço sem graça Renato Aragão, hoje com 84 anos. 

Observação: Dos outros três integrantes da trupe, somente "Dedé" — nome artístico de Manfried Sant'Anna — continua vivo (aos 83 anos); Zacharias (Mauro Faccio) morreu em 1990 e Mussum (Antonio Carlos Gomes), em 1994. 

A reportagem, assinada por Bruna Motta e Fernando Molica, relembra que os quatro patetas fizeram um estrondoso sucesso por longos 30 anos — recorde mundial de permanência de programa humorístico no ar, devidamente registrado no Guinness — despejando a mancheias piadas de gosto duvidoso sobre mulheres, homossexuais, negros, nordestinos e pobre em geral em pleno horário nobre. E ninguém reclamava. Pelo contrário: no Rio, o programa chegou a ter mais ibope que o quase imbatível Jornal Nacional. Os filmes dos Trapalhões figuram ainda hoje entre as seis maiores bilheterias de todos os tempos. O disco "Saltimbancos Trapalhões" vendeu 100 mil cópias — um feito extraordinário para a época. Mas nem tudo eram flores nesse jardim.

O primeiro racha do grupo aconteceu em agosto de 1983 — a Globo passou seis meses exibindo reprises, enquanto se tentava pacificar os ânimos. O estopim da briga teria sido uma reportagem de capa de VEJA (O Grande Palhaço — Por que Renato Aragão Faz Rir), que evidenciava a condição de estrela maior de Didi e escancarava sua fortuna — esse, o empurrão fatal para a rebelião. Tamanha foi a raiva que Dedé, Mussum e Zacarias anunciaram o rompimento em uma entrevista coletiva, com Didi junto, sem saber de nada e pego de surpresa. 

Seguiu-se um período tumultuado, com cada lado fazendo trabalhos próprios (e fracassados) e Aragão estrilando com os “traidores” que o trocavam pelo trio de desafetos. Victor Lustosa, diretor assistente dos filmes dos Trapalhões até o fatídico 1983, conta a reação furiosa de Renato Aragão ao ouvir que estava de partida para a produtora rival. “Ele me falou: ‘você vai morrer de fome e não venha bater na minha porta depois’.” Mais cruel ainda foi a forma como dispensou sumariamente os três ex-colegas, ainda segundo Lustosa: “Não preciso deles. Posso fazer a mesma coisa tendo um cachorro, um macaco e um veado”.

A matéria revela ainda que Didi roubava as melhores piadas para si. Ferrugem, ator mirim no auge dos Trapalhões e que contracenou com eles na televisão e nos filmes, relata que certa vez perguntou a Wilson Vaz, redator do programa, por que estava aparecendo pouco. “Ele me mostrou uma pilha de páginas de texto que havia escrito para mim, mas o Renato não deixou que me passasse”, relembra. José Lavigne, que dirigiu Os Trapalhões por alguns meses, confirma ser constante a intervenção de Didi na divisão das piadas. “Mas dono de programa não rouba, ele pega”, filosofa, pragmático.

Várias pessoas da equipe relembram os comentários e as atitudes racistas a que Mussum era submetido. “Ele deixava bananas na cadeira dele”, conta a camareira Sirene Oliveira. “Meu pai não gostava disso de jeito nenhum”, disse à reportagem o filho do humorista, Sandro Gomes. Se a brincadeira de mau gosto acontecia fora do palco, Mussum mostrava sua irritação. No contexto do programa, ele revidava com saraivadas de piadas sobre nordestinos em geral e cearenses em particular (Aragão nasceu em Sobral).

Durante a Copa do Mundo de 1994, Mussum morreu, aos 53 anos, por complicações decorrentes de um transplante de coração. Decretou-se então o fim de Os Trapalhões, no ar (com este nome) desde 1976. Passado um tempo, a Globo recontratou Aragão para um programa-solo e Dedé foi para o SBT fazer o mesmo — conquistando mais audiência do que o antigo chefe. Reconciliaram-se em um lacrimoso encontro no Criança Esperança de 2004 e, quatro anos depois, estrearam em dupla um programa global, Turma do Didi (claro), encerrado definitivamente em 2010. A Veja, Dedé disse que não tem raiva de ninguém, mas não vai colocar azeitona na empada dos outros”. O humorista amargou sérios problemas financeiros e recebe ajuda do velho companheiro Didi. De certa forma, e apesar de tudo, esses dois trapalhões continuam juntos — sem graça como sempre foram, se o leitor me permitir uma opinião sincera.

Para concluir, segue o texto de Walcyr Carrasco:

Em um capítulo de A Dona do Pedaço, coloquei uma personagem falando de uma possível rival: “Deve ser gorda”. Foi o suficiente para receber acusações de “gordofobia”. Já tive também, em outro elenco, um ator que beirava os 140 quilos. Mas se ofendeu e cortou relações comigo quando um personagem o chamou de “gordo”. Descobri que é errado dizer “gordo”, “gorda”. Grupos militantes, haters da internet, todos se revoltam. O correto? Quando se vai falar de alguém que está gordo, gordíssimo, diz-se que está com “sobrepeso”. Criou-se a categoria de modelos “plus size”. Na verdade são gordas que desfilam de lingerie, moda praia… Tudo bem. Plus size, ou qualquer outro termo, dá no mesmo. São gordas. O que se faz é mudar palavras para retirar o suposto sobrepeso (não resisti, é sobrepeso mesmo) negativo. Uma tendência forte no politicamente correto. É um vocabulário pasteurizado. Eu tenho barriga, creio que nunca a perderei. Já disse que, quando preciso viajar, compro um lugar para mim, outro para a barriga. Eu e a barriga. Às vezes, quando vou comprar uma camisa, digo: “Não quero listras horizontais, porque engordam”. O vendedor me observa, crítico. Caio em mim. Reconheço. O que engorda não são as listras. Mas comer pudim e chocolate, logo após um churrasco gorduroso. Entre outras delícias. Mesmo assim, opto por uma camisa preta “porque emagrece”. Prefiro rir e fazer piada a ser tratado com cautela. Como se minha barriga não pudesse ser tema de conversa.

A verdade pura e simples. Gordo não quer ser gordo. Raríssimas são as exceções. Prova disso é que entre 2011 e 2018 o número de cirurgias bariátricas no Brasil aumentou em 85%. No total, até o ano passado, foram realizadas 424682. É óbvio que a obesidade é um problema de saúde. Mas a maior parte dos pacientes só deseja usar tamanho P. Muitas crianças choram na escola quando são chamadas de gordas. Para tirar a carga negativa, não seria melhor simplesmente aceitar que as pessoas são o que são? Politicamente correto significa falar de um jeito mais bonitinho? É claro que termos como “barril”, “elefante” são ofensivos. Magoam. Se eu posso tomar cuidado e não usar esses termos, é melhor. Mas também não quero mascarar a realidade.

É tão ruim ser gordo? Fora os problemas de saúde causados pela obesidade? Pois bem. Não é. Nós vivemos num mundo contraditório. O padrão de beleza é ser magro. Mulheres esqueléticas, subalimentadas, são consideradas lindas. Só ossos, eis tudo. O padrão de beleza real é a mulher com curvas, seios, quadris. Expresso pelos machistas numa frase lapidar: “Homem gosta de ter onde pegar”. Eu conheço gordas com intensa vida afetiva e sexual. Amadas e desejadas. No universo gay, existe a procuradíssima categoria dos “ursos”. Nela se enquadram também os gordos.

É uma nova ditadura em que as palavras são mascaradas. Bobagem. Vocabulário não é regime. Falar diferente não emagrece. Gordice é gordice. Só que ninguém precisa sofrer por isso. Basta ser gordo e feliz.